quinta-feira, 29 de junho de 2023

passo os dias a guiar esta pena à revelia dos meus passos

passo os dias a guiar esta pena à revelia dos meus passos
e dias pois vacas gados selvagens tomam de assalto de
saltos altos os asfaltos as hemorragias dos povos as
agonias da fome a letargia da pobreza a ansiedade do
rico por querer sempre mais para aplacar a gula
voraz de comer mais do que os sete pecados capitais
e de beber até desmandar mais do que os dez mandamentos
e não se importam com quem vive ao relento a sobreviver
de dia à noite debaixo de marquises ou sob viadutos
sem indutos para o de viver ou o de comer ou o de beber
quiça amar o próximo abastado como a si mesmo
e que não deseja a ninguém as bem aventuranças do
simbólico sermão da montanha que desconhece por
não proteger a criança abandonada no banco da praça
a mãe foi ali não voltou o pai também foi ali não voltou
e só a criança que ficou não consegue nem mais chorar
ainda mais que é um menino preto do gueto que
não merece nenhum soneto ou uma menina preta
quem diria que não merece nenhuma poesia dilema
também não são temas das infinidades de poemas
e nem as odes os acode ou os poetas das dimensões
os têm por inspirações ou boas aspirações mas
só loas de falsas intenções tais estas aqui reveladas
pois meninos pretos ou meninas pretas não importam
as interpretações da vida que levam só a gerada
incomodação pois incomodam onde chegam nunca
são bem-vindos(as) ou tudo se resolve num mata leão
ou numa sessão de tortura quando não termina na morte pura
e a sociedade agradece  sem jamais perder a ternura

BH, 0110502023; Publicado: BH, 0290602023.

terça-feira, 27 de junho de 2023

sou muito bem guardado igual a uma velha colcha de retalhos

sou muito bem guardado igual a uma velha colcha de retalhos
pois mãe pai me cercam de todos os cuidados para não cair
em tentações ou outras quedas que podem ser fatais
e nunca vou à rua sozinho só ando acompanhado
e todos estão sempre a me chamar à atenção ao me sentar
ou ao me levantar ou ao me deitar ou no desjejum ou
ao comer minha comida ou beber os tarjas pretas
ou refrescos ou mingaus para não me engasgar pois
sempre me engasgo fico o dia todo a soluçar
e a suspirar até à noite com refluxos ou a espirrar com defluxos
e não tem jeito não há nada que faz parar só com o tempo
pois dizem que o tempo cura tudo como um senhor da razão
e é o melhor dos remédios vamos ver que não sei não
filosofia não é a minha padaria nem psicologia nem psiquiatria
quanto mais filologia é que sô tenho angústia
e ansiedade acompanhada por agonia aguda
e aflição casada com depressão profunda
mais coisas psicóticas tais pânicos com
surtos severos
intermináveis mas param com os coquetéis de tarjas pretas
e aí prosto-me fora de mim completamente sedado
por longas horas com que o povo aqui consegue um pouco de paz
porém temporária enquanto também fico como se estivesse em coma
e será sempre assim até o dia que deus deixar de se esquecer de mim

BH, 0110502023; Publicado: BH, 0270602023.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Em frente ao coqueiro verde

Em frente ao coqueiro verde

Esperei uma eternidade

Ja fumei um cigarro e meio

E Narinha nao veio
Como diz Leila Diniz
O homem tem que ser durao
Se ela nao chegar agora
Nao precisa chegar
Pois eu vou me embora
Vou ler o meu Pasquim
Se ela chega e nao me ve
Sai correndo atras de mim

não gosto dos eventos nem das pessoas

não gosto dos eventos nem das pessoas
que vão aos eventos nem das músicas que
tocam nos eventos pois gosto é dos ventos
das ventanias dos vendavais das chuvas das
tempestades das nuvens carregadas de raios
dos relâmpagos dos fogos dos céus das águas
dos mares dos fundos azuis dos oceanos
e não gosto de me ver fora do meu meio
ambiente desgarrado da minha flora
desviado da minha fauna morto da minha
natureza transviado do meu trânsito pois
gosto de estar vivo no composto do meu
ecossistema a sentir o meu bioma quando o
vento sopra me desperto fico irrequieto em
comixão em excitação o vento traz tradição
cheiros dos antepassados aromas dos
ancestrais suores dos antecedentes com
lembranças memórias recordações
mentalizações dos cascalhos das pedras dos
rochedos das pedreiras das cachoeiras de
mármores lajedos de lajes de plataformas
dos firmamentos dos pilares pilastras pilotis
pilates pilotos das naves espaciais
encobertas nas auroras bureais que descem
nas madrugadas nos sonhos dos madrigais
das abóbadas celestiais dos arrebóis solares
a criança dorme sem pesadelo só a sonhar
com tempos perfumados de florais

BH, 020502023; Publicado: BH, 0230602023.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

há muito tempo não venho aqui

há muito tempo não venho aqui
é que entrei em vários surtos psicóticos
por vários dias consecutivos
e fui encaminhado muitas vezes ao cersam
e tarjas pretas mais tarjas pretas em cima de
tarjas pretas parei um pouco com os surtos
depois de quebrar a porta de vidro da
entrada a porta do armário da cozinha a
porta do guarda roupa o lábio superior do
pai que virou um beiço com um murro
certeiro hoje escrevo estas laudas ainda
meio sedado pai lá de longe de vez em
quando me lança um olhar de soslaio igual
bandido olha dissimulado para ver como
estou é que mãe saiu em silêncio com receio
das minhas reações porém até agora penso
que esteja bem sob o controle dos remédios
que não me deixam surtar nem ficar
agressivo ou praticar violência diagnóstico
de autismo severo não é fácil vamos ver 
durante quanto tempo permanecerei assim
aleatório mas à toda hora a me lembrar de 
ana c ou de torquato neto ou da irmã que
agora é que está a ver o que é ser professora
no país sem receber o piso nacional ou sem o
aumento salarial anual é obrigada a fazer
paralização diária ou a entrar em greve mas
pai avisou mãe avisou o país não respeita
professor nem valoriza até concordo com os pais

BH, 020502023; Publicado: BH, 0190602023.

rio à beira dum riacho acho

rio à beira dum riacho acho
regato gato mio em si bemol menor
à ursa maior felino menino malino moleque
ribeirão mata a sede do meu coração açude
temporário seco templário pinguela bamba
corda acorde acode acorda o comboio de
pêndulo que pede à lua nua prateia a rua
para a moça namorada não passar no escuro
sozinha ao voltar da casa do namorado pela
estradinha que margeia à noitinha a branca
casinha quintal da vizinha terreiro da
madrinha terreno da igrejinha tudo na
cidadezinha é ladainha à tarde morrinha
vento modorrento menino do bairro luxento
que diz assim não aguento andar de carro de
boi montar em jumento cavalo sebento
mosca rodoleiro traz o unguento bicheira
coitado do asnento não vai servir ao vigário 
o assento a paróquia não tem outro rabugento vai ter que ser a pé no açoite do
relento nas visitas aos ralados pelo templo abandonados rebentos que comem terra
brincam no chão um dia lamacento quando
cai um chuvinha de alento noutro poeirento
e o bom deus manda um frescor sonolento e
nem é mais hora de sesta já vou até embora
meu avô tem que contar história de caçador
de onça lampião vaqueiro boiadeiro canga 
bruta de cangaceiro e minha avó só cantoria
de rio preto assombração pai afoga o ganso
ganho mais um irmão esse não vai morrer não vai ser batedor amanssador de burro
bravo laçador de rês arredia que corre à
revelia então adeus minha mãe até outro dia
pois não aprendi a fazer nada vou tentar
fazer poesia ou quem sabe poema que seja o
pão meu de cada dia

BH, 0180502023; Publicado: BH, 0190602023.

domingo, 18 de junho de 2023

SILAS DE OLIVEIRA, APOTEOSE DO SAMBA:

Samba quando vens aos meus ouvidos
Embriagas meus sentidos
Trazes inspiração
A dolência que possuis na estrutura
É uma sedução
Vai alegrar o coração daquela criatura
Que com certeza está sofrendo de paixão

Samba, soprado por muitos ares
Atravessastes os sete mares
Com evolução
O teu ritmo que te torna ainda mais ardente
Quando vem da alma de nossa gente

Eu quero que sejas sempre meu amigo leal
Não me abandones não
Vejo em ti o lenitivo ideal
Em todos os momentos de aflição
És meu companheiro inseparável de tradição
Devo-lhe toda a gratidão
Samba, eu confesso és a minha alegria
Eu canto para esquecer a nostalgia.

Dona Ivone Lara, Acreditar.

 Acreditar

Acreditar, eu nãoRecomeçar, jamaisA vida foi em frenteE você simplesmenteNão viu o que ficou pra trás
Não seiSe você me enganouPois quando você tropeçouNão viu o tempo que passouNão viu que ele me carregavaQue a saudade lhe entregavaCom o aval da imensa dor
E eu agora moro nos braços da pazIgnoro o passadoQue hoje você me trazE eu agora moro nos braços da pazIgnoro o passado
Que hoje você me trás

quando piorar mais já que não vou melhorar

quando piorar mais já que não vou melhorar
só piorar podeis-me deixar morrer à míngua
e ao léu sem pena nem dó pois aprendi com
meus avôs minhas avós a nào ter pena nem 
dó de cor salteado de ninguém pois por mais
que se tenha pena de alguém não ajuda em
nada nem melhora só piora a situação de
quem sentimos dó ou pena mas mjnha avó
dizia a matar um animal criatura vira a cara
para lá que esse teu olhar só vai ajudar a
criação a sofrer ou demorar a morrer igual
a meu avô que era a mesma coisa com o
coração durão a matar um cão com um tição
e mamãe herdou a ação a sangrar a galinha
domingueira o peru natalino encachaçado
enconhacado a ser preparado para ser
enfarofado logo mais assado para com odes
à alegria devorado até os ossos degustados
e comigo neste fim de vida há de ser assim
sem vela ladainha ou um sossegado jardim
se não vali nada em vida em morte nem
envolto em roxo cetim ou flores de jasmins
ou choros de iasmins ou cânticos de querubins
ou hinos de arcanjos serafins só fustigações
de anjos ruins sujos tortos seres mortos
entidades mórbidas desses macabros
fantasmas ectoplasmas porém sombrios
espectros sem brios estrelas sem brilhos onde as
trevas me envolverão por minha eterna ingratidão

BH, 040502023; Publicado: BH, 0160602023.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Vicente Celestino, Coração Materno.

 Disse um campônio à sua amada

Minha idolatrada, diga o que quer

Por ti vou matar, vou roubar

Embora tristezas me causes, mulher

Provar quero eu que te quero

Venero teus olhos, teu porte, teu ser

Mas diga, tua ordem espero

Por ti não importa matar ou morrer

E ela disse ao campônio, a brincar

Se é verdade tua louca paixão

Partes já e pra mim, vais buscar

De tua mãe, inteiro o coração

E a correr o campônio partiu

Como um raio na estrada sumiu

E sua amada qual louca ficou

A chorar na estrada tombou

Chega à choupana o campônio

Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar

Rasga-lhe o peito o demônio

Tombando a velhinha aos pés do altar

Tira do peito sangrando

Da velha mãezinha o pobre coração

E volta a correr proclamando

Vitória, Vitória, tem minha paixão

Mas em meio da estrada caiu

E na queda uma perna partiu

E à distância saltou-lhe da mão

Sobre a terra o pobre coração

Nesse instante uma voz ecoou

Magoou-se, pobre filho meu?

Vem buscar-me, filho, aqui estou

Vem buscar-me, que ainda sou teu.

domingo, 11 de junho de 2023

não gosto quando mãe sai de casa

não gosto quando mãe sai de casa
e fico só com pai à deriva em delírios
pai é muito onírico utopista
e fala que capitalista é do capeta
e que deveria se chamar capetalista
pois só gera misérias pobrezas desgraças
ultraliberais infinitas neoliberais
e mãe é mais de igreja
e de pastor
e irmãs
e irmãos
e rezas
e orações
pai não
pai é de bar
e de boteco
e de botequin
e de birosca de zona
e bebe todas
e fica ruim
e passa mal
e ninguém aqui em casa gosta
quando pai bebe pois é uma confusão só
e conflito
e atrito
e contundência
e palavrão
mas não tem jeito não
botou o pé na rua
entra em outra situação totalmente fora de si
e nem se lembra de nada do que fez
ou do que falou
e das quedas que levou
e mãe teve que ir às casas oernambucanas
e fiquei aqui com o velho pirata bucaneiro à
mesa da sala
e de vez em quando nos encaramos de soslaio
silenciosamente pois o certo é que nos odiamos
e se não são os tarjas pretas que me sedam
já teria enchido a cara do corsário de porradas
mas estou equilibrado aqui sentado no chão
da cozinha com a cabeça recostada na
geladeira depois de percorrer todos os
ambientes livres da presença do velho
demente que passa os últimos dias inúteis 
a lavrar laudas fúteis que todos irão ignorar em vão

BH, 0110502023; Publicado: BH, 0110602023.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

CARTA ABERTA AO JOÃO BOSCO:

 Desumanizá-lo é chsmá-lo de monstro sagrado. Generoso, cordial, cavaleiro andante complacente, sua obra permanece ajudando a abrir clareiras na mata selvagem. Eu, poetinha redundantemente menor, escrevi Prima Dona para o senhor (tão notável), mas, agora, como pedir-lhe para compor? Ajude-me a encontrar alguém que o queira (seu filho?). Alguém que o senhor recomende. GRATIDÃO.

JOSÉ IGNÁCIO PEREIRA, O PORTA DO CÉU AZUL, Céu Azul - Belo Horizonte- MG.

JOSÉ IGNÁCIO PEREIRA, O POETA DO CÉU AZUL, PRIMA DONA

Eu não te dou predarias
nem um brilhante legado.
Vindo de terras sombrias,
vivo num sonho amparado.

       Qual D. Quixote, eu luto
       contra os moinhos do mundo.
       A fome morde no fruto,
       no pomo do amargo profundo.

            Canta a ária da ternura
            junto ao meu coração.
            Sê tu nobre criatura,
            faz do lirismo a razão.

Vem e concerta comigo
o concerto de alegria.
Um só acorde contigo
já consagra a sinfonia.

    Eu te esperei inteira.
    Valeu a pena esperar.
   O amor é grão, sementeira
   que ensina a gente a plantar.

Sinhá de imensa bondade,
vem me trazer alforria.
Eu mourejo noite e dia
por uma tal liberdade.

Tu és mais que Julieta;
O Romeu não teve assim.
Rima rica borboleta
ninfs Verona de mim.

Meu ataúde tristonho
faz-me um jogral da saudade
que implora o tom risonho
do que chamamos verdade.

Celebrar cantando agors
a ide amorosa da ação
que tem o mago condão
de despertar uma aurora.

Dama de boa família,
minha musa da canção.
Brasileira de Brasília
a donzela do sertão.

Está aberta a temporada
do amor perfeito. Pois é.
O bem é o tudo que até
existe em torno do nada.

Mário Quintana, Antologia Poética, Ray Bradbury

Eu queria escrever uns versos para Ray Bradbury, o primeiro que, depois da infância, conseguiu encantar- me com suas histórias mágicas como no tempo em que acreditávamos no Menino Jesus que vinha deixar prezentes de Natal em nossos sapatos empoeirados de meninos e nada tinha a ver com a impenetrável Santíssima Trindade.
Era no tempo das verdadeiras princesas, nossas belíssimas primeiras namoradas
- não essas que saem periodicamente nos jornais.
Era no tempo dos reis verdadeiramente heráldicos como os das cartas de jogar e do bravo São Jorge, com seu cavalo branco, sua  lança e seu dragão.
Era no tempo em que o cavaleiro Dom Quixote realmente lutava com gigantes, os quais se disfarçavam em moinhos de ventos. Todo esse encantamento de uma idade perdida Ray Bradbury o transportou para a Idade Estelar e os nossos antigos balõezinhos de cor agora são mundos girandos no ar.
Depois de tantos anos de cínico materialismo Ray Bradbury é a nossa segunda vovozinha velha que nos vai desfiando suas histórias à beira do abismo - e nos enche de susto, esperança e amor.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

e desde menino nunca tive a mente iluminada

e desde menino nunca tive a mente iluminada
ou a cabeça aberta ou o crânio neandertal
arejado
só o crânio de cromagnon petrificado
e a única cabeça aberta que tinha era a cabeça
rachada de samba lê lê que nunca pensou
e ainda mais agora que está quase
septuagenária é que não vai pensar
e só por pedradas doutro menino era que às
vezes a caixa era arrebentada
e me viciaram em gammar
e nada de raciocinar
e me entupiram de memoriol
e nada de memorizar
ou de lembrar
ou de recordar
ou de mentalizar
e me afogaram de biotônico fontoura
e ficava raquítico
e sem atitude
e sem ânimo
e nem as surras
e as tacas me despertaram
e pelo contrário me inibiram muito mais
e continuava criança obscura que a
vizinha chamava de menino malino com
olhos de criminoso assassino
e fui assim já condenado na infâmia da
infância
e morria afogado nos rios rasos sob os risos alheios
e corrias de brigas
e de bois que pensava que eram bravos
e não enxergava um palmo à frente do nariz
devido à miopia tardiamente detectada
e não escutava direito
e esquecia as rezas
e as orações
e as preces que aprendia
e os óculos nas cachoeiras
e os quebrava
nas peladas do futebol nos campinhos
e piado desde então virei piada de quatro olhos
e nunca mais deslanchei dessas amarras
malditas das cavernas 

BH, 02701002021; Publicado: BH, 060902022.

Mário Quintana, Antologia Poética, Selva Selvaggia.

As palavras espiam como animais:
umas, raladas, sensuais, que nem panterss...
outras, escuras, furtivas raposas...
mas as mais belas palavras estão pousadas nas frondes mais altas, como pássaros...
O poema está parado em meio da clareira.
O poema
caiu 
na armadilha! debate-se
e ora subdivide-se e entrechoca-se como esferas de vidro colorido 
ora é uma fórmula algébrica
ora, como um sexo, palpita... Que importa
que importa qual seja enfim seu verdafeiro universo?
Ele em breve será inteiramente devorado pelas palavras!

Mário Quintana, Antologia Poética, A Noite Grande

Sem o coaxar dos sapos ou o cricri dos grilos
como é que poderíamos dormir tranquilos a nossa eternidafe? Imagina
uma noite sem o palpitar das estrelas
sem o fluir misterioso das águas.
Não digo que a gente saiba que são águas estrelas
grilos...
- morrer é simplesmente esquecer as palavras.
E conhecermos Deus, talvez,
sem o terror da palavra DEUS.

Mário Quintana, Antologia Poética, Crônica.

Sia Rosaura tirava a dentadura para comer
Por isso ela tinha o sorriso postiço mais sincero da minha rua
Dona Maruca fazia uns biscoitinhos minúsculos, estalantes e secos chamados mentirinhas
Eduviges era pálida e lia romances lacrimosos de Perez Escrich
Tanto suspirou em cima deles que acabou fugindo com um caixeiro-viajante
O tempo se desenrola como um rio por entre as casas de portas e janelas
Pequenas vidas
Pequenos sonhos
Na noite imensa as estrelas eram como girândolas brancas que houvessem parado
Sentados à porta
- dois santos, dois mágicos, dois sábios - 
meu velho Tio Libório e o velho farmacêutico propunham-se charadas que depois orgulhosamente remetiam sob nomes supostos para o grande anuário estatístico recreativo e literário da capital do Estado.

Mário Quintana, Antologia Poética, XXXXXXXXX

Quem disse que a poesia é apenas agreste avena?
A poesia é eterna Tomada da Bastilha     eterno quebra-quebra 
o enforcar de judas, executivos e catedráticos em todas as esquinas e,
a um ruflar poderosos de asas,
entre cortinas encendiadas,
os Anjos do Senhor estuprando as mais belas filhas dos mortais...

Deles, nascem os poetas.
Não todos...Os legítimos espúrios:
um Rimbaud, um Poe, um Cruz e Zouza...

(Rege-os, misteriosamente, o décimo terceiro signo do Zodíaco.)

Mário Quintana, Antologia Poética, O Poeta Canta a Si Mesmo

O poeta canta a si mesmo 
porque nele é que os olhos das amadas 
têm esse brilho a um tempo inocente e perverso...

O poeta canta a si mesmo 
porque num seu único verso 
pende - lúcida, amarga - 
uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...

Porque o seu coração é uma porta batendo a todos os ventos do universo.

Porque além de si mesmo ele não sabe nada 
ou que Deus por nascer está tentando agora
                                                 [ansiosamente respirar neste seu pobre ritmo dispetso!

O poeta canta a si mesmo
porque de si mesmo é diverso.