quinta-feira, 24 de março de 2011

Gonçalves Dias, A Tarde; BH, 0230302011.

Oh tarde, oh bela tarde, oh meus amôres,
Mãe da meditação, meu doce encanto!
Os rogos da minha alma enfim ouviste,
E grato refrigério vens trazer-lhe
No teu remansear prenhe de enlevos!
Enquanto de te ver gostam meus olhos,
Enquanto sinto a minha voz nos lábios,
Enquanto a morte me não rouba à vida,
Um hino em teu louvor minha alma exala,
Ó tarde, ó bela tarde, ó meus amôres!

I

É bela a noite, quando grave estende
Sôbre a terra dormente o negro manto
De brilhantes estrêlas recamado;
Mas nessa escuridão, nesse silêncio
Que ela consigo traz, há um quê de horrível
Que espanta e desespera e geme n'alma;
Um quê de triste que nos lembra a morte!
No romper d'alva há tanto amor, tal vida,
Há tantas côres, brilhantismo e pompa,
Que fascina, que atrai, que a amar convida;
Não pode suportá-la homem que sofre,
Órfãos de coração não podem vê-la.

Só tu, feliz, só tu, a todos prendes!
A mente, o coração, sentidos, olhos,
A ledice e a dor, o pranto e o riso,
Folgam de te avistar; - são teus, - és dêles.
Homem que sente dor folga contigo,
Homem que tem prazer folga de ver-te!
Contigo simpatizam, porque és bela,
Qu'és mãe de merencórios pensamentos,
Entre os céus e a terra êxtasis doce,
Entre dor e prazer celeste, arroubo.

II

A brisa que murmura na folhagem,
As aves que pipitam docemente,
A estrêla que desponta, que rutila,
Com duvidosa luz ferindo os mares,
O sol que vai nas águas sepultar-se
Tingindo o azul dos céus de branco e d'oiro;
Perfumes, murmurar, vapôres, brisa,
Estrêlas, céus e mar, e sol e terra,
Tudo existe contigo, e tu és tudo.

III

Homem que vive agro viver de côrte,
Indiferente olhar derrama a custo
Sôbre os fulgores teus; - homem do mundo
Mal pode o desbotado pensamento
Revolver sôbre o pó; mas nunca, oh nunca!
Há de elevar-se a Deus, e nunca há de ele
Na abóbada celeste ir pendurar-se,
Como de rósea flor pendente abelha.
Homem da natureza, êsse contemple
De púrpura tingir a luz que morre
As nuvens lá no ocaso vacilante!
Há de vida melhor sentir no peito,
Sentir doce prazer sorrir-lhe n'alma,
E fonte de ternura inesgotável
Do fundo coração brotar-lhe em ondas.

Hora do pôr do sol! - hora fagueira,
Qu'encerras tanto amor, tristeza tanta!
Quem há que de te ver não sinta enlevos,
Quem há na terra que não sinta as fibras
Tôdas do coração pulsar-lhe amigas,
Quando dêsse teu manto as pardas franjas
Soltas, roçando a habitação dos homens?
Há i prazer tamanho que embriaga,
Há i prazer tão puro, que parece
Haver anjos dos céus com seus acordes
A mísera existência acalentado!

IV

Sócio do forasteiro, tu, saudade,
Nesta hora os teus espinhos mais pungentes
Cravas no coração do que anda errante.
Só êle, o peregrino, onde acolher-se,
Não tem tugúrio seu, nem pai, nem 'spôsa,
Ninguèm que o espere com o sorrir nos lábios
E paz no coração, - ninguém que estranhe,
Que anseie aflito de o não ver consigo!
Cravas então, Saudade, os teus espinhos;
E êles, tão pungentes, tão agudos,
Virando o coração de um lado a outro,
Nem trazem dor, nem desespêro incitam;
Mas remanso de dor, mas um suave
Recordar do passado, - um quê de triste
Que ri ao coração, chamando aos olhos
Tão espontâneo, tão fagueiro pranto,
Que não fôra prazer não derramá-lo.

E quem - ah tão feliz! - quem peregrino
Sôbre a terra não foi? Quem sempre há visto
Sereno e brando a deslizar-se o fumo
Sôbre os tetos dos seus; e sôbre os cumes
Que os seus olhos hão visto à luz primeira
Crescer branca neblina que se enrola,
Como incenso que aos céus a terra envia?
Tão feliz! quando a morte envôlta em pranto
Com gelado suor lh'enerva os membros,
Procura inda outra mão coa mão sem vida,
E o extremo cintilar dos olhos baços,
De um ente amado procurando os olhos,
Sem prazer, mas sem dor, ali se apaga.
O exilado! êsse não; tão só na vida,
Como no passamento êrmo e sòzinho,
Sente dores cruéis, torvos pesares
Do leito aflito esvoaçar-lhe em tôrno,
Roçar-lhe o frio, o pálido semblante,
E o instante derradeiro amargurar-lhe.

Porém, no meu passar da vida à morte,
Possa co'a extrema luz dêstes meus olhos
Trocar último adeus com os teus fulgores!
Ah! possa o teu alento perfumado,
Do que na terra estimo, docemente
Minha alma separar, e derramá-la
Como um vago perfume aos pés do Eterno.

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