A ares numa aldeia.
Quando cheguei, aqui, Santo Deus! como eu vinha!
Nem mesmo sei dizer que doença era a minha,
Porque eram todas, eu sei lá! desde o Ódio ao Tédio,
Moléstias d'Alma para as quais não há remédio,
Nada compunha! Nada, nada. Que tormento!
Dir-se-ia acaso que perdera o meu talento:
No entanto, às vezes, os meus nervos gastos, velhos,
Convulsionavam-nos relâmpagos vermelhos,
Que eram, bem o sentia, instantes de Camões!
Sei de cor e salteado as minhas aflições:
Quis partir, professar num convento de Itália,
Ir pelo Mundo, com as pés numa sandália...
Comia terra, embebedava-me com luz!
Êxtases, espasmos da Teresa de Jesus!
Cantei naquele dia um cento de desgraças,
Andava, à noite, só, bebia a Noite às taças.
O meu cavaco era o dos Mortos, o das Loisas.
Odiava os Homens ainda mais, odiava as Coisas.
Nojo de tudo, horror! Trazia sempre luvas
(N'aldeia, sim!) para pegar num cacho d'uvas,
Ou numa flor. Por causa dessas mãos... Perdoai-me,
Aldeões! eu sei que vós sois puros. Desculpai-me.
Meu pobre coração toda a noite gemia
Como num hospital...
Entrai na enfermaria!
Vede! Quistos de Dor! Furo-os com uma lança:
Que nojo, olhai! são as gangrenas da Esperança!
Lanceto mais: que lindas cores! um Oceano!
Ó mornos vagalhões do Coração humano,
Amarelos, azuis, negros, cor de Sol-posto!
Ó preamar de pus! maré-viva d'Agosto!
Oceano! ó vagalhões! qual é a vossa Lua?
A que horas é a baixa-mar, quem vos escoa?
Lanceto mais ainda: as ilusões sombrias!
Cancro do Tédio a supurar Melancolias!
Gangrenas verdes, outonais, cor de folhagem!
Ó pus do Ódio a escorrer nesta alma sem lavagem!
Tristezas cor de chumbo! Spleen! perdidos sonos!
Prantos, soluços, ais (o Mar pelos outonos)
A febre de Oiro! O Amor calcado aos pés! Gênio! Ânsia!
Medievalite! O Sonho! As saudades da Infância!
Quantos males, Senhor! Que Hospital! Quantas doenças!
Filosofias vãs! Perda das minhas crenças!
Neurastemia! O Susto! Incoerências! Desmaios!
Sede de imensa luz como a dos pára-raios!
Entusiasmos! Lesão-cardíaca da Raiva!
Mágoas sem fim, prantos sem fim! Chuva, saraiva
De Insultos! Aflições e Desesperos! Gota
De Cóleras! Horror...
Deixei fugir a escota,
Perdi-me no alto mar, quando ia na galera
À Índia da Ilusão, ao Brasil da Quimera!
Ó Bancos do Remorso! ó rainhas Machebetts
Da Ambição! ó Reis Lears da Loucura! ó Hamlets
Da minha Vingança! ó Ofélias do Perdão...
(Sossega! Faze por dormir, meu coração!
Vai alta a noite...) E o sangue arde-me nestas veias!
Febre a cem graus! Delírio: o Céu de Luas-Cheias
Desde o Oriente ao Sol-pôr, de Norte a Sul coberto:
O mundo jovial de guarda-sol aberto!
Mar de esmeralda fluída, praias de oiro em pó!
Ó esquadras das quais era almirante eu só!
Ó clarins a soar entre balas, na guerra!
E vencer pela Pátria! E ser Conde da Terra
E do Mar! El-Rei! Ser Senhor-feudal do Mundo!
Encher a transbordar a Vida, mar sem fundo,
Com palácio, Amor, glórias, Luxo, batalhas,
E reis e generais envoltos nas mortalhas!...
Pra contar tanta coisa a encher tantos abismos,
Homens! criai outro sistema de algarismos!
Meu Deus! Que pesadelo! Ah tanta febre assusta...
Struggle-for-life! Ó velho Darwin, tanto custa!
Antes não ter nascido. Ó Morte, vem buscar-me...
Um lenço branco Adeus! nos longes, a acenar-me:
Adeus, meu lar! adeus, taça de leite!
E foi o dia treze... E os corcundas e o azeite!
Que eu entornei, Pretas que eu vi, uivos de cães!...
Choras? Por que, por quem, Amo? Pelos Alguéns...
Chorar é bom. Ainda te resta esse prazer,
Lágrimas: suor da alma! Cansado? Vais morrer,
Vais dormir... Ainda não! Mais febres, suores frios,
Tremuras, convulsões, nevroses, arrepios!
Unhas de leão, raspando cal numa parede!
Corpos divinos, nus, ao léu! Luxúrias, sede
De amor místico! Amar freiras de hábito branco,
Morrer com elas despenhado num barranco,
Sob relâmpagos!...
Jesus! Jesus! Jesus!
Ah quanto foi bem pior que a tua a minha cruz!
Quanto sofri, meu Deus! Ah quanto eu sofro ainda!
E isto num mês de paz, nesta época tão linda,
Solstício de Verão, quando nos sabe a vida,
Quando aparece o cravo, a minha flor querida,
Quando os Sóis-postos são uma delícia, quando
Os aldeões andam a podar, cantarolando,
E, ali, ao pé dos milharais, as lindas netas
Ceifam curvadas, como na haste as violetas!
Médico? Para quê?... A doença era d'Alma.
Saía, apenas, à tardinha, pela calma,
Sorvendo aos haustos a resina dos pinheiros.
Tomava quase sempre a estrada dos Malheiros.
A nossa casa é ao virar mesmo da estrada,
Onde perpassam os aldeões na caminhada
E a mala-posta a rir, cheia de campainhas!
Ora havia, lá (e há ainda) umas Alminhas
Com um painel antigo sob um oratório,
Que são as almas a penar no Purgatório.
E têm esta legenda: "Ó vós que ides passando
Não esqueçais a nós neste lume penando!"
Deitava-lhe dez réis, mas ficava a cismar
Que mais penava eu... se elas quisessem trocar!
E mais adiante (ainda me lembro: num atalho
Ao pé da fonte) havia um monte de cascalho
Com uma Cruz de pau, braços ao Sul e ao Norte,
Para mostrar que, ali, se fizera uma morte:
Ora (é um costume) quando alguém vai de longada
Ao ver aquela Cruz, que parece uma espada,
Deita uma pedra: cada pedra é uma oração.
Oh raras orações! nunca se calam, não!
Perpetuamente, lá ficam os Padre-Nossos,
Rezas de pedra, a orar, a orar por esses ossos!...
Eu, como os mais, deitava uma pedra, também,
Dizendo para mim: "se me matasse alguém..."
Mas eu seguia o meu passeio, estrada fora,
E ninguém me matava...
Ah! vinham a essa hora
As moças da lavoura a cantar, a cantar,
(Faziam-me, Senhor! vontade de chorar...)
Mas quando, perto já, eu me ia aproximando,
Paravam de cantar e ficavam-me olhando...
E, que eu não fôsse ouvir, murmuravam, baixinho,
Com dó no olhar: "Como ele vai acabadinho!"
Mais adiante, encontrava a mulher do moleiro,
Que ia o cântaro encher à Fonte do Salgueiro,
Lindos cabelos empoeirados de farinha:
Era uma flor, mas parecia uma velhinha...
- Vai melhorando? - Assim... vou indo, melhor...
- Pois seja pelas Cinco Chagas do Senhor...
E um pouco mais além, no lugar do Casal,
Numa casa de colmo, assentado ao portal,
Estava um cego, e a fiar ao lado estava a mãe,
E mal sentia, ao longe, as passadas de alguém,
Clamava em sua vez vibrante de ceguinho:
"Meu nobre Senhor! olhe este desgraçadinho!"
Ai de mim! ai de mim! como não vê quem passa,
É que chama a atenção para a sua desgraça!
E, para bem coroar o meu trágico fado,
Dizia-me, ao passar, o Dr. Delegado:
"Vá para casa, fuja aos orvalhos da Noute."
E, grave, para si:
"A Ciência abandonou-te!"
Horror! horror! horror! Que miserável sorte!
Em tudo via a Velha, em tudo via a Morte:
Um berço que dormia era um caixão pra cova!
Via a Foice no Céu, quando era Lua-Nova...
Se ia à tapada ver ceifar as raparigas,
Via-a entre elas a cortar também espigas!
E ao ver as terras estrumadas, como lume,
Quedava-me a cismar no seu destino... estrume.
A pomba que passava era a minha alma a voar...
E era a minha agonia um pinhal a ulular!
E, ao ver meadas de linho a corarem, ao Sol,
Pensava... se estaria, ali, o meu lençol...
E o que eu cismava ao ver passar os carpinteiros,
Cantando alegres e fumando, galhofeiros,
A tiracolo a serra, o martelo e o formão...
Vinham, quem sabe! de acabar o meu caixão!
Deitava-me no chão de ventre para o Ar,
Cismava: se morrer, é assim que hei de ficar...
Ao longe, ao longe, entre as carvalhas do caminho...
Quando na ermida dão Trindades, de mansinho,
E os cravos dão à luz o fruto do seu ventre...
Quando se vê os Céus doidos, místicos, entre
Soluços e ais a desmaiar, como num flato:
Ali, na encosta aonde bebem num regato
Os Animais, também bebia. Ora, uma vez
(Sim, faz agora, pelo São Martinho, um mês)
Quando para beber me debrucei na pia,
No fundo d'água, vi uma fotografia...
Jesus! Um velho! O seu cabelo assim ao lado,
O mesmo era que o meu, todo encaracolado!
O rosto ebúrneo! o olhar era tal qual o meu!
E o lábio... Horror! Fugi! esse velhinho era eu!
Fugi!
E, desde então, não mais saí de casa.
Há muito, que não vejo uma flor, uma asa,
Há muito já, que não sorvi o mel de um beijo:
Do meu cortiço voou a abelha do Desejo.
As duas filhas do caseiro, ao vir da escola,
Dantes vinham-me ver, eu dava-lhes esmola
Cantavam, riam e saltavam, um demônio!
E tão lindas, Jesus! tão amigas do Antônio...
E, agora, mal me vêem, tremem todas, coitadas!
Eu chamo-as da janela e fogem, assustadas!
E, ao vê-las na fugida, eu quase que desmaio...
Jesus, tão lindas! são duas Tardes de Maio!
Um doente faz medo. Por isso fogem dele.
Estou, aqui, estou indo. Só tenho pele.
Nada me salva, nada! É impossível salvar-me.
E o que eu tenho a fazer é, apenas, resignar-me
E já me resignei... Mas Carlota, esse amor,
Quis por força chamar o bom Sr. Doutor.
E eu consenti, enfim. E lá mandou o criado
Buscar o cirurgião. Ele é o mais afamado
Nestas três léguas, o Dr. da Presa Velha.
Ei-lo que chega...
- Olá!... (Vê-me a língua vermelha,
Toma-me o pulso...) - Está bom, isso não é nada,
Beba-lhe bem, vá aos domingos à toirada,
E, sobretudo, veja lá... nada de verso...
Mas o doutor mais eu, nós somos tão diversos!
Certo, ele é sábio, mas não tem tática alguma
Destas moléstias e o que eu tenho é apenas uma
Tísica d'Alma. Enfim...
A Carlota! A Carlota!
Boa velhinha como ela é meiga e devota!
Já estaria bem, se me valessem rezas.
E no Oratório, tem duas velas acesas
Noite e dia, a chamar à Senhora das Dores!
E queima-lhe alecrim, põe-lhe jarras com flores
E sei, até, que prometeu uma novena,
Se eu escapar... Como tudo isso me faz pena!
E trata-me tão bem, tão bem, como se eu fôsse
Seu filho. Dá-me, olhai, pratinhos de arroz doce
Com as iniciais do nome em canela,
E traz-me o caldo, como exijo, na tigela
Por onde come o seu. E dá-me o vinho fino,
Onde me molha o pão-de-ló "pro seu menino"
Que é assim que eu gosto, pelo Cálix do Senhor,
Que pertenceu, outrora, ao meu Tio Reitor.
Carlota é um beijo. Faz-me todas as vontades.
Quando me sinto pior, ao bater das Trindades,
E me apetece comer terra, algumas vezes
(Assim, são nossas Mães, perto dos Nove Meses)
Sai a buscar uma mão-cheia. Vem molhada:
Foi ela que chorou... mas diz que "é da orvalhada..."
E quando, enfim, sombrio, agoniado, farto,
Me vou deitar, a santa acompanha-me ao quarto:
Ajuda-me a despir e mete-me na cama.
E com um mimo que só sabe ter uma ama
Cobre-me bem, "durma, não cisme", dá-me um beijo,
E sai. Finge que sai, cuida ela que eu não vejo,
Mas fica à porta, a ouvir-me falar só,
E não se vai deitar...
Onde há, assim uma Avó?
A todo instante, se ouve à porta: "Tlim, tlim, tlim!"
Três léguas em redor manda saber de mim:
(Aqui, lhes deixo minha eterna gratidão.)
Toca o sino e lá vai a Carlota ao portão.
Muito baixinha, atarefada; espreita à grade,
- Quem é?... E, então, olhai!
"É o Sr. Abade
Que manda esta pedir, mortinha de manhã";
Mais o Sr. D. Sebastião da Vila Meã
- O bom Senhor! pra que se está a incomodar
"Que manda este salmão do Tâmega, a saltar";
Mais o Sr. Doutor de Linhares "que manda
Os cravos mais lindos que tinha na varanda";
Mais "o da Igreja que oferece a codorniz
Que matou hoje, na Tapada de Dom Luís";
Mais o Sr. Miguel das Alminhas de Pulpa
"Que manda este peru e que pede desculpa";
Mais "as fidalgas de Raimonda e de Tuias:
Mandam os livros e cá e vêm, um destes dias..."
E, até o Astrônomo, coitado! e o Zé dos Lodos
Mandam coisas: sei lá... o que podem. E todos
Mandam também saber "como vai o Menino..."
E, então, Carlota, bom Deus! é tal qual o sino
Na noite a badalar as suas badaladas!
Põe-se a contar, carpindo, a minha doença às criadas
Tudo que eu digo, quanto faço, quanto quero:
- Olhe, Sra. Júlia, às vezes, desespero...
Mas, eu quero-lhe tanto! ajudei-o a criar...
Em pequenino era tão bom de aturar...
E depois era tão alegre, tão esperto!
E então que lindo! Era mesmo um cravo aberto!
Mas, hoje, é aquilo: tem os olhinhos sumidos,
Tão faltinho de cor, os cabelos compridos,
E tosse tanta vez! já arqueia das costas...
Só falta vê-lo deitadinho, de mãos postas!
E ele é tão bom, tem tão bons modos...
- Coitadinho!
- Olhe, Sra. Júlia, nunca viu o linho
Que a gente deita ao Sol, quando é para secar,
E que se põe assim a esticar, a esticar?
Assim é o meu Menino...
- Ó Senhora Carlota
E se falasse à Ana Coruja, essa que bota
As cartas? Foi talvez malzinho que lhe deu...
- Nunca foi assim: foi depois que se meteu
A fumar, a beber e lá com as po'sias.
Aquilo para mim foram as companhias.
Vinha para casa, à meia-noite, noite morta,
E eu fazia serão para lhe abrir a porta.
E nunca ia à lição, ficava sempre mal
Nos seus exames, escrevia no jornal:
E o Pai (que é um santo, como há poucos) que não via
Nem vê mais nada, então nunca o repreendia
Com medo de o afligir... mas depois, quando estava
Metido à noite, só, no seu quarto... cismava.
- O Povo diz por i que foi paixão que trouxe
Lá dos estudos, de Coimbra...
- Antes fosse,
Porque o remédio estava, ali, na Igreja... Adei...
- Mas se a menina não quisesse... eu sei, eu sei...
- Sra Júlia! Não havia de querer!
Não que ele é mesmo alguém i para se perder,
Para deitar à rua: um senhor tão prendado!
Depois, está aqui, está quase formado...
Ai valha-me, Jesus! eu peerco a ideia, faço
A minha perdição... Às vezes, ergue o braço
E vai por i fora, por todas essas salas,
A pregar, a pregar, e tem mesmo uma falas
Que não enxergo bem, mas que fazem tremer:
Ontem, à noite, quando se ia a recolher,
(Quando faz lindo luar, quer deitar-se sem vela)
Entrou na alcova, eu tinha ainda aberta a janela,
E diz-me, assim, tão mau: "pra que veio entornar
Água no quarto?" e vai-se a ver... era o luar!
E quando foi para chamar o cirurgião?
Jesus! quanto custou! Que não, que não, que não!
Não tinha fé nenhuma "em um doutor humano"
Que só a tinha no Sr. Dr. Oceano.
Mas uma coisa que lhe faz ainda pior,
Que o faz saltar e lhe enche a testa de suor,
É um grande livro que ele traz sempre consigo,
E nunca o larga: diz que é o seu melhor amigo,
E lê, lê, chama-me: "Carlota, anda ouvir!"
Mas... nada oiço. Diz que é o Sr. Shakespeare.
E às vezes, bota versos, diz coisas tão más!
Nada lhe digo, mas aquilo não se faz.
Ainda, esta manhã: eu estava a pôr flores
E as velas à Senhora das Dores,
(Que tem dó dele, coitadinho! chora tanto...)
Vai o Menino a olhar, a olhar, sai-me dum canto
E uiva-lhe assim:
"Antes as tuas Sete Espadas!"
E o que à Sra. Júlia diz, diz às mais criadas.
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