terça-feira, 26 de março de 2019

Manuel Bandeira, Paisagem noturna; BH, 050202011.

A sombra imensa, a noite infinita enche o vale...
E lá no fundo vem a voz
Humilde e lamentosa
Dos pássaros da treva. Em nós,
 - Em noss'alma criminosa,
O pavor se insinua...

Um carneiro bale.
Ouvem-se pios funerais.
Um como grande doloroso arquejo
Corta a amplidão que a amplidão continua...
E cadentes, metálicos, pontuais, 
Os tanoeiros do brejo,
 - Os vigias da noite silenciosa,
Malham nos aguaçais.

Pouco a pouco, porém, a muralha de treva
Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça
Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva
A sombria massa
Das serranias.

O plenilúnio vai romper... Já da penumbra
Lentamente reslumbra
A paisagem de grandes árvores dormentes.
E cambiantes sutis, tonalidades fugidias,
Tintas deliquescentes
Mancham para o levante as nuvens langorosas.

Enfim, cheia, serena, pura,
Como uma hóstia de luz erguida no horizonte,
Fazendo levantar a fronte
Dos poetas e das almas amorosas,
Dissipando o temor nas conciências medrosas
E frustrando a emboscada a espiar na noite escura,
 - A Lua
Assoma a crista da montanha.

Em uma luz se banha
A solidão cheia de vozes que segredam...
Em voluptuoso espreguiçar de forma nua
As névoas enveredam
No vale. São como alvas, longas charpas
Suspensas no ar ao longo das escarpas.
Lembram os rebanhos de carneiros
Quando,
Fugindo ao sol a pino,
Buscam oitões, adros hospitaleiros
E lá quedam tranquilos ruminando...
Assim a névoa azul paira sonhando...
As estrelas sorriem de escutar
As baladas atrozes
Dos sapos.
E o luar úmido... fino... 
Amávico... tutelar...
Anima e transfigura a solidão cheia de vozes...

                                           Teresópolis, 1912

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