Uma gafe do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes durante a sessão que julgava a suspeição do ex-juiz federal Sergio Moro nos casos de julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva levou a ministra Cármen Lúcia a dizer que “mulheres são invisíveis”.
No momento em que devia passar a palavra para a colega, Mendes deu a vez a Ricardo Lewandowski, o que motivou a reação, em tom de brincadeira, de Cármen Lúcia. De acordo com uma pesquisa publicada nesta semana, mulheres também são “deixadas para trás” pelo STF no momento da escolha de autores para fundamentar decisões.
O estudo conduzido pelos advogados Daniela Urtado, Bruno Lorenzetto e Pedro Kenicke, e pelo bacharel em Direito Diego Kubis Jesus, mostra quais são os nomes dos constitucionalistas mais citados pelo STF no controle de constitucionalidade concentrado.
No topo da lista, estão José Afonso da Silva, Gilmar Mendes, José Alfredo de Oliveira Baracho, Ingo Wolfgang, Ives Gandra Martins, Paulo Bonavides e Clèmerson Merlin Clève. Entre 114 nomes, apenas 13 são femininos.
Os dados foram obtidos a partir da análise de julgados em sede de controle concentrado de constitucionalidade. A delimitação temporal corresponde ao período de 1º de janeiro de 2013 a 31 de dezembro de 2020. O estudo foi realizado nos meses de janeiro e fevereiro de 2021.
Foram analisados 1.147 julgados, e não foram levadas em consideração as decisões julgadas não conhecidas, as prejudicadas, as medidas cautelares e os embargos de declaração, por exemplo. Levou-se em consideração apenas uma citação por acórdão para cada autor e autora, ainda que mais de uma obra tenha sido citada na decisão.
Os autores consideraram como constitucionalistas aquelas e aqueles que possuem produção acadêmica direcionada para o direito constitucional, e/ou que estejam vinculados institucionalmente à área.
“Não se pretende, contudo, afirmar tratar-se da doutrina que é mais seguida pela Corte. São, antes, informações que podem, porventura, auxiliar em reflexões e produções de saberes acerca das instituições”, afirmaram os autores ao site Migalhas.
Entre os nomes de mulheres que constam no levantamento está o de Damares Medina, 40 anos, com carreira construída em Brasília. Em entrevista ao Metrópoles, ela falou sobre desigualdade de gênero no Judiciário e interpretou os dados do estudo.
Como foi a sua trajetória no direito?
Nasci em Minas e cresci no Rio, mas fiz minha carreira toda em Brasília, onde morei desde os 20 anos, quando me formei em direito e comecei logo a advogar no STF.
A primeira liminar que ganhei na vida foi aos 21 anos, com o ministro Sepúlveda Pertence. Lembro que era um caso de corte de proventos de aposentadoria de professor da UnB, um mandado de segurança contra ministro do TCU.
Fui eu também a advogada do primeiro caso de ingresso formal de amicus curiae (amigos da Corte, interessados nos processos, mas não partes diretamente envolvidas), com o ministro Celso de Mello, ainda no começo dos anos 2000. Até então os amici ingressavam apenas informalmente, então foi um divisor de águas na jurisprudência do STF e acabou sendo tema do meu mestrado e do meu primeiro livro.
Entrei na faculdade de direito da UFMG aos 16 anos, então comecei bem cedo. E a vida toda eu só advoguei, além de dar aula no IDP e fazer pesquisa jurídica. Minha área é pesquisa empírica, notadamente o comportamento decisório dos ministros do Supremo.
Depois do doutorado e de ter publicado meu segundo livro, agora faço pós-doutorado na Universidade de Coimbra, com o Vital Moreira.
O que explica o fato de haver somente 13 mulheres entre 114 autores citados nessa área pelo STF?
Gostaria de destacar que foram feitos dois levantamentos, o primeiro, de 2012. Os pesquisadores levantaram todos os processos do concentrado desde 1988, e éramos 6 mulheres em 64 autores, incluindo a ministra Carmen Lúcia (9,37%). Entre 2013 e 2020, somos 13 em 114 (11,4%) autores citados na jurisprudência do STF no controle concentrado.
O número de mulheres mais que dobrou, mas aumentou muito também o número de juristas citados. Isso mostra que há uma maior procura do STF em fundamentar a jurisprudência dele em autores, em doutrinas nacionais, e isso é um dado positivo.
Quando olhamos para o recorte de gênero, qual é a interpretação possível?
Eu vejo essa questão da citação da mulher, do recurso a uma doutrinadora, como reflexo da estratificação do Poder Judiciário. Um levantamento da jurista Jane Gonçalves mostra que o ingresso na magistratura é relativamente equânime, mas quando esses dados chegam à cúpula do Judiciário, onde a nomeação depende de critérios políticos, como nomeação, a situação é dramática e se inverte.
De todos os 93 ministros que compunham tribunais superiores em 2018, apenas 16 eram mulheres. Temos 82,8% de homens na cúpula do Poder Judiciário. Se transpusermos esses dados para o STF, temos entre 11 ministros apenas 2 mulheres (18%). Se pelo menos as mulheres citassem as mulheres, poderíamos pensar em uma representatividade de 18%. Somos sub-representadas até entre as ministras mulheres.
Como explicar essa falta de representação?
É um problema estrutural, porque a mulher entrou mais tarde nos quadros jurídicos. A primeira advogada, Myrthes Gomes de Campos, concluiu bacharelado em 1898 e só foi aceita nos quadros do Instituto dos Advogados Brasileiros em 1906. A primeira juíza, em 1954, Thereza Grisólia Tang, ouviu do presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que ela era apenas “um teste”.
Em 1965, veio a primeira professora de direito, Bernadete Pedrosa. Em 1990, a primeira ministra em tribunal superior, Cnéa Cimini Moreira. E só em 2000 a primeira ministra do STF, Ellen Gracie.
É uma questão estrutural, e não tenho dados sobre a presença feminina nos livros de direito constitucional, mas nós sabemos que ainda hoje nos congressos e seminários a gente luta por representação de gênero. Vemos vários painéis nesses eventos compostos majoritariamente por homens em todas as áreas do direito.
Quais são os caminhos para promover mais igualdade nesse meio?
É um problema complexo e estrutural que precisa ser endereçado. No trabalho da Jane Gonçalves, ela mostra que o senso comum indica para o fato de que é uma questão de tempo. Daqui a 300 anos, quem sabe, alcancemos uma representação igualitária na cúpula do Poder Judiciário e nos demais quadros. Mas ela mostra que não é apenas questão de tempo, isso não vai acontecer [sem que se faça nada] e são necessárias medidas afirmativas que garantam a diversidade e a representatividade. É um tema que merece atenção e reflexão.
Essa desigualdade gera problemas?
A falta de pluralismo traz muitos prejuízos. Um dos fundamentos do estado democrático de direito é a representatividade, abertura da jurisdição constitucional. Se a mulher não está presente em quem aplica a lei, um reflexo imediato é não ser citada como referência. É uma estratificação estrutural que vem se reproduzindo em todas as relações de poder.
Podemos falar sem exagero que é uma aplicação do direito masculina, androcêntrica, e isso se reflete em quem é citado no direito em uma perspectiva constitucional. Todos nós saímos perdendo.
Por que vemos tantas mulheres advogadas, mas tão poucas nos altos cargos da cúpula?
Hoje em dia 64% dos aprovados na OAB são mulheres e 36%, homens. Na base da magistratura, a diferença entre homens e mulheres não é tão profunda. O ingresso é relativamente igualitário, mas a promoção é estratificada. Os altos cargos são indicações políticas, e é aí que as mulheres são deixadas de lado.
Esta semana comemoramos o Dia Internacional da Mulher e ouvi uma observação interessante: metade da humanidade é mulher e a outra metade também veio de nós. Essa falta de representatividade tem reflexos perversos, é a falta de uma visão mais plural do direito, uma visão também feminina ao aplicar a lei. Isso é um efeito de círculo vicioso.
Por que é importante ser citada como referência?
O fato de ser citado é um prestígio, uma validação do seu trabalho. A partir do momento que você não é citada, isso serve como desestímulo para atuar na área, para a pesquisadora que busca projetos acadêmicos.
É um círculo vicioso perverso, que opera um fator de exclusão da mulher em todos os níveis. É importante estarmos atentos a isso para ter motivos para comemorar as mulheres todos os dias do ano. Precisamos de medidas inclusivas, que as ministras citem as mulheres, promover essa abertura, porque toda a sociedade ganha.
A responsabilidade do Supremo é profunda. Você cita quem você lê. Claro que nem todos que você lê são citados, você menciona aqueles que você reconheceu como válidos a ponto de endossar a sua opinião – no caso, decisões do Supremo.
Mas para dar essa validade o primeiro passo é ler. Então, no limite, a mensagem que o Supremo passa é que não lê mulheres, e isso é muito profundo, pois reflete uma visão de mundo.
Eu mesma passei a fazer esse crivo de gênero em meus escritos e sempre me policio: se homens e mulheres escreveram sobre o tema, leio primeiro as mulheres, depois os homens, cito o melhor. Com isso aprendemos a começar a corrigir e reestruturar essas relações. Começo por mim. Eu tenho uma filha pequena, a Sofia, e, se um dia ela for uma autora, espero que a realidade seja diferente para ela.
A falta de diversidade no judiciário vai além do gênero, certo?
Dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2018, indicavam que ,dentre os magistrados, mais de 84% se declaravam brancos, 15%, negros, e 0,1%, indígenas. É o retrato da desigualdade estrutural reproduzida na estrutura judicial, que possui o monopólio estatal de dizer o que é o direito, e, por conseguinte, a aplicação da lei.
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