Bom tempo foi o d'outrora
Quando o reino era cristão,
Quando nas guerras de mouros
Era o rei nosso pendão,
Quando as donas consumiam
Seus teres em devação.
Dava o rei uma batalha,
Deus lhe acudia do céu;
Quantas terras que ganhava,
Dava ao Senhor que lhas deu,
E só em fazer mosteiros
Gastava muito do seu.
Se havia muitos Infantes,
Torneio não se fazia;
É esse estilo de Frandres,
Onde anda muita heregia:
Para os armar cavaleiros
A armada se apercebia.
Chamava el-rey seus vassalos
E em côrtes logo os reunia:
Vinha o povo atencioso,
Vinha muita cleregia,
Vinha a nobreza do reino,
Gente de muita valia.
Quando o rei tinha-os juntos
Começava a discursar:
"Os Infantes já são homens,
Vou-me às terras d'além-mar
Arma-los e cavaleiros;
Deus Senhor m'ha de ajudar."
Não concluia o pujante
Rei - de assim lhes propor
Clamavam todos em grita
Com vozes de muito ardor:
"Seremos nessa folgança,
Honra do nosso Senhor!"
E logo todos em sembra,
Todos gente mui de bem,
Na armada se agazalhavam,
Sem se pesar de ninguém;
E os Padres de São Domingos
Iam com eles também.
Iam, sim, os bentos Padres:
E que assim fosse, e rezão,
Que o sancto em guerras d'Igreja
Foy hum bom sancto christão:
Queimou a muitos hereges
No fogo da expiação!
Quando depois se tornava
Toda a frota pera cá,
Primeiro se perguntava,
"Que terras temos por lá?"
Quem Deos tanto confia,
Sempre Deos por si terá.
El-rei tornava benino,
Como coisa natural:
"Temos Ceita, Arzilla ou Tangere,
Conquistas de Portugal!"
E todos, a voz em grita,
Clamavão: real! real!
Bom tempo foy o d'outr'ora
Quando o reyno era christão;
Os moços davão-se á guerra,
As moças á devação:
Aquella terra de mouros
Vivia em muita afflicção.
Deo-nos Deos tantas victorias,
E tanto pera louvar,
Que os Padres de Sam Domingos
Ja não sabião rezar;
Todo-lo tempo era pouco
Pera louvores cantar!
Sendo tantas as batalhas,
Nem recontro se perdeo!
Aquelles Padres coitados
Não tinhão tempo de seo
Levavão todo cantando
Louvores ao pay do céo.
Louvores ao pay do céo,
Que eu inda possa trovar,
Quando não vejo nos mares
Nossas quinas tremolar;
Mas somente o templo mudo,
Sem guarnimentos o altar!
Vejo os sinos apeados
Dos campanarios subtiz,
E a prata das sacristias,
Servida em misteres vis,
E ante aos leões de Castella
Dobrada a Luza cerviz!
Canr'eu, em bem que sou Padre,
Diga que sou Portuguez:
Arço de ver nossas coizas
Hirem todas ao revez,
Arço de ver nossa gente
Andar comnosco ao envez.
Mercê de Deos! minha vida
He vida de muita dura!
Vivo esquecido dos vivos
Na terra da desventura;
Vivo escrevendo e penando
N'um canto de cella escura.
Do meo velho breviário
Só deixarei a leitura
Pera escrever estes carmes,
Remedio á nossa armagura;
O corpo tenho alquebrado,
Vive minha alma em tristura.
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