quarta-feira, 8 de maio de 2024

se algum dia alguém me perguntar

se algum dia alguém me perguntar 

o que fazes da vida

responderei faço poesias 

faço poemas

mas isso 

não são poesias 

isso não são poemas

responderei 

graças a deus

domingo, 5 de maio de 2024

qual a função de quem amador

qual a função de quem amador

não tem profissão dom de nascença

boa aparência nem ótima impressão?

mau elemento mal alimentado

a andar em más companhias

em ruas de becos imundos

às voltas de poços sem

fundos não emergi de volta ao

mundo cada vez mais a descer 

para o fundo do subterrâneo

debaixo do manto da crosta da 

terra do lodo do pântano tal a um

morto ignoto ignaro que não tem

mais nada a fazer pois a vida não

interessa mais não tem mais 

prazer de viver nem quis por

onde sobreviver todos sabem 

das más condições pois não tem

condição nenhuma não tem amor

nem tem paz não é capaz nem

sagaz dizem os mais só um rapaz

que parece uma raparigas triste

que vive abstratamente sem conteúdo

concreto que não passa por algo 

verídico que é só falso como um fausto

que diz que ouviu mefistófeles na

voz dum cachorro de noite na 

cozinha ou na voz dum corvo na 

janela do quarto que estorvo que 

ninguém aredita de fato nem no fado

nem no nenúfar por algum agrado


BH, 090402024; Publicado: BH, 060502024.

João Nogueira;

quinta-feira, 2 de maio de 2024

lembrarei de ti não quero te esquecer

lembrarei de ti não quero te esquecer
precisas esquecer precisas viver não
quero não faço mais questão de viver
quero só te ver nas coisas nas quais 
não te via não quero ver outra assombração
quero ver só a tua aparição a tua 
visagem miragem não me importa o
que os outros vão dizer o que me 
importa é te ver aparecer no espelho 
que tinha medo que quebrasses na 
janela donde olhavas o nada o teu 
nome na placa do cemitério a campa
rasa sem o epitáfio tu amarrado nas
macas entubado a morte chegava
enquanto fugia de medo de te ver 
morrer morrestes sem sentir que 
morrias enquanto corria avenida
fora a querer atravessar entre os
carros sem olhar aos lados para ser
atropelado não saber da verdade que
havias morrido mas morrias de 
verdade a deixar-me morto absorto
abstrato oblíquo sem entender o 
absurdo que a morte causa ao ente
que a gente ama se amei alguém 
ao não amar nem a mim mesmo 
amei a tu que morreste a matar-me
a seguir morto atrás de ti
que nem me conhecias

BH, 0170402024; Publicado: BH, 020502024.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

MENOTTI DEL PICCHIA, A VOZ DAS COISAS>

A VOZ DAS COISAS [JUCA MULATO]


E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:

"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"

E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,

que foi de um galho meu que fizeram teu berço?

E a torrente que ia rolar no abismo:

"Juca, fui eu quem deu a água para o teu batismo".

Uma estrela a fulgir, disse da etérea altura:

"Fui eu que iluminei a tua choça escura

no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.

E teu pai te abraçou chorando de contente...

— Será doutor! — a mãe disse, e teu pai, sensato:

— Nosso filho será um caboclo do mato,

forte como a peroba e livre como o vento! —

Desde então foste nosso e, desde esse momento,

nós te amamos seguindo o teu incerto trilho

com carinhos de mãe que defende seu filho!"

Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,

pareciam querer apertá-lo entre os braços!

"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,

o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,

o varejão do barco e essa lenha sequinha

que de noite estalou no fogo da cozinha?

Depois, homem já feito, a tua mão ansiada

não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?

"Não vás" — lhe disse o azul — "Os meus astros ideais

num forasteiro céu tu nunca os verás mais.

Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas

hão de relampejar como pontas de espadas.

Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,

irão te procurar com seus olhos de fogo...

Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas

correndo atrás de quem anda fugindo delas..."

Juca olhou para a terra e a terra muda e fria

pela voz do silêncio ela também dizia:

"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo.

Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.

Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera

há uma cova que se abre, há meu ventre que espera.

Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,

e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.

Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo,

buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo?

Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento.

Só por meio da dor se alcança o esquecimento.

Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,

que, na terra natal, a própria dor dói menos...

E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)

no pedaço de chão em que a gente nasceu!"


terça-feira, 23 de abril de 2024

alguém viu por aí a letra encantada?

alguém viu por aí a letra encantada?
que faz parte da palavra enfeitiçada?
não sei quantas letras encantadas são
as que formam essa palavra enfeitiçada
procuro essas letras já desde então
olhei em todos os dicionários de
todos os idiomas línguas dialetos
não ficarei quieto algum mago nagô
deve saber algum feiticeiro xangô vai
querer algum bruxo xamã há de me 
ensinar a falar as palavras de letras
enigmáticas de sílabas sibilinas de
sons ciciantes de ecos fragorosos que
calam trovões que silenciam vulcões
cada letra dessa que procuro para
trazer nas costas é uma pirâmide
cada palavra uma cordilheira dos
andes uma muralha da china um
abismo onde todos os feiticeiros
foram jogados onde todas as bruxas
foram queimadas as fornalhas 
onde todos os hereges foram
incinerados essas últimas letras
dessas últimas palavras precisam
ser recuperadas ressuscitadas para
acabar com as maldições os malditos
os proscritos assim de átomo em 
átomo de molécula em molécula
grão em grão forma-se um novo
universo novo encantado onde só
são ditas benditas palavras encantadas
maravilhas das maravilhas das letras
maravilhadas que enchem as almas 
das mais imensuráveis grandezas

BH, 0170402024: Publicado: BH, 0230402024.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

que condenação perpétua injusta imposta a mim

que condenação perpétua injusta imposta a mim
nunca mais verei o teu sorriso imortal que
destino tão malvadão me privar assim da única
flor do meu jardim pois eras um prisma que 
refratava a luz no teu olhar eras uma obra de arte
em marfim uma obra-prima a emoldurar teu
sorriso hoje não contento com nada o sol vem me
alegrar fecho as janelas espanto o vento seco a 
chuva não faço mais questão das coisas do meu
coração sei que acabou sei que o meu amor foi 
em vão não me cansarei de repetir o meu amor 
foi em vão me dão religião desprezo me dão paz
quero guerra me dão benção quero maldição me
dão a mão quero o pé não quero fé quero fugir 
do meio ambiente não sou mais senhor de mim
agora sou diferente indiferente inerente demente
condenado ao exilo ao degredo de não mais 
descobrir do teu olhar o segredo o que quererei
fazer com os outros olhares vazios? só o teu olhar
o meu enxergava só o teu olhar o meu caminho 
iluminava agora viverei cego os restos dos meus 
dias não quero cão de guia bengala cajado vara
vidente não quero a luz das estrelas não quero a 
luz dos luzeiros dos cruzeiros a cumprir pena 
pétrea nesta masmorra morro acorrentado bandido
que nunca mais será perdoado pois deixei a luz parar
de brilhar na fonte viva que emanava do teu olhar

BH, 0170402024; Publicado: BH, 0190402024.