quinta-feira, 17 de novembro de 2022

quero viver pois viver para mim não é comer

quero viver pois viver para mim não é comer
e nem beber pois viver para mim é escrever
no sarcófago é escrever nas masmorras
e nos calabouços ou em qualquer outro lugar
no qual possa ser encontrado em liberdade
ou preso em correntezas marinhas
ou de cachoeiras de cataratas
ou em correntes de ar pois preciso viver
e viver para mim é vasculhar letras
e esmiuçar alfarrábios
e remexer em alfabetos extintos de línguas
exterminadas
batear palavras de idiomas sobrenaturais
estranhos
e quero o meu cadáver bem pesado
e com o bojo recheado
e com todos os órgãos sobrecarregados
e inchados que os tanatólogos deixarão
em seus devidos lugares pois não quero meu
cadáver esvaziado como uma carcaça de
sucata envelhecida
e saberão que ali jaz era um poeta intacto
e possuído por seus espíritos
e possesso por seus demônios que
tanto o atormentaram em vida
e nunca o deixaram ser feliz como uma criança
precisa da necessidade de ser feliz e as    infelicitamos
com certeza viverei nas minhas letras
e minhas palavras me comporão
e sobreviverei no meu resistente esqueleto
de marfim de elefante nobre
e a minha caveira de diamantes raros
gargalhará da eternidade na cara dos mortos
que ficarão aqui pois não descansarei em paz
no infinito se não tive paz no finito
e não quererei o descanso na posteridade
das minhas cinzas universais

BH, 0200502019; Publicado: BH, 01701102022.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

e chego cá comigo aos sessenta e sete anos

e chego cá comigo aos sessenta e sete anos
sozinho e só e a sós e solitário e me arrastei
réptil serpente sangue frio cobra víbora anfíbio
e dinossauro e tiranossauro-rex e mamute
e mastodonte e urso pardo e preto e polar
e panda e bicho preguiça de estimação desde 
doutras estações e não vejo opções a não ser
desprezar esses sessenta e sete setembros e
todos os outros passados e os que por acaso
vierem e manter o mesmo desprezo e
ignorância e isolamento e causar lamento nas
outras almas e imprecações nas outras bocas
e xingamentos nas outras línguas e no mais é
o que é demais para um velho rabujo e mal
cheiroso e cheio de inhaca e bodun e tiririca
e sebo nas juntas e remelas nos olhos e
melecas no nariz e babas na boca aberta de
lábios pendentes sem dentes e que não fecham
mais e nem falam gentilezas e vive sempre
sebenta sedenta com sede de aguardente e
cerveja e conhaque e outros-venenos mais
que não pode mais degustar-de tantas que são
as proibições dos médicos-e dos artesões da
saúde e outros paramentos-que querem
resguardar os restos de vida ou-de morte do
velho jumento rabugento

BH, 0100102022; Publicado: BH, 01601102022.

e no silêncio da sala do barracão

e no silêncio da sala do barracão
não oiço nem os arroubos do meu coração
e nem ausculto as equalizações do meu
organismo
e os passos ao vento
e as tosses
pigarros
e escarros
e os sons estrondosos das gargantas profundas
alheias dos semelhantes
e só de muito distante me vem do além para o
aquém algum augúrio dum alguém
ou dalgum sabe-se lá quem se fantasma
ou ectoplasma se assombração
ou energúmeno se mentecapto
ou espectro dalguma entidade se imagem de anjo
ou de demônio se simulacro não sei
e nem sei só movo a mão acorrentada
à está esferográfica
sangro de hemorragia em hemorragia
e não estanco o sangue que é desperdiçado
pois não aparece nenhum vampiro desesperado
para aproveitar o sangue coagulado
e se o terreno ainda fosse terreiro de terra
massapê
e de terra nobre
e fértil muitas pérolas raras germinariam à flor
do chão com tema
e com lema
e sem dilema
ou mistérios
e sinistros
ou enigmas que
decifrações causariam mortes
e infelicidades
e cada gota de sangue seria dum poeta morto
e cada flor vermelha seria duma poesia
e cada pétala imortalizada seria dum poema
e os fósseis resgatados das gavetas dos
tempos pré-históricos seriam relíquias nas
molduras nas paredes
e nas pilastras
e nos pilares do firmamento do universo
e cada um com um silêncio novo de
catacumba de faraó em sarcófago de ouro maciço

BH, 0130102022; Publicado: BH, 01601102022.

domingo, 13 de novembro de 2022

ainda devo uma rara obra-prima à humanidade

ainda devo uma rara obra-prima à humanidade
para também poder ser um ser humano
ainda devo uma obra de arte que supere
duma vez por todas as minhas malasartes
maus feitos
e mazelas da vida sem vela
e de bandeira em fralda
e ainda devo
e não nego
pago quando puder com uma bela arte para
superar todas as feiuras dos meus tempos
e mais nada posso dizer enquanto não pagar
o ar que respiro
e o azul do céu do firmamento que olho
e a sombra da árvore na qual me assento
e a água fresca do riacho no qual bebo
e do ribeirão no qual me banho
e do açude
e do regato
e da natureza que maltrato por ser reles
e não ser real
e por ser ralé anormal
e não ser normal mas a poesia cobra de mim
todo dia o vento que me embala
e me faz sentir vivo
e animado na brisa
e no sereno
e no orvalho
e na névoa
e na neblina
e o poema me acorda com o sol
e bate na minha cara
e tapa no meu rosto é que sou um nó cego
e só causo desgosto
e augúrio
e minhas premonições abstratas
e minhas incoerências
e um dia vou
e não volto mais
e não pago
e o universo levará a eternidade inteira
a falar mal de mim

BH, 070102022; Publicado: BH, 01301102022.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Pink Floyd - Animals (Full Album) 1977

e será que poeta morre mesmo

e será que poeta morre mesmo
ou será mais uma enganação do destino?
penso que o que morre não é o poeta
e sim o bojo que é o habitat do poeta
o pote que quebra
a talha que racha
a moringa que se parte
o vaso que vaza
e todo componente no qual o poeta está inserido morre
e o poeta fica fendido no universo com o
alicerce de versos
e o testamento com testemunho de versões
de poesias
e de poemas que dão gemas no estatuto dos
sonetos de sonhos
e ai aí vem um
e fala thiago de melo morreu
e é pouco
e vem outro
e fala thiago de melo morreu
ninguém diz que thiago de melo viveu
e muito
e vive muito mais ainda
ou estarei enganado?
ou será que poeta é menos
e menor ainda
e é engodo que qualquer coisa mata
e qualquer mortezinha chega
abala a fortaleza do poeta?
e o poeta é mero
e mínimo
ou é superior à morte morta?
o poeta é universal
michelangelo pintou o céu no teto da capela sistina
poeta pinta o firmamento do céu
e a cor preferida do poeta é o azul que é a cor
do infinito mas a palheta do poeta é o arco-íris
e o pincel é de pestanas
e de cílios e de sobrancelhas
e as telas do poeta são as pálpebras
o óleo é o sangue
e a sociedade é a única que mata o poeta
e a mídia também adora matar poetas em vida
as academias
e os liceus
e os ginásios
e os colégios
assassinam poetas cotidianamente mas o
poeta teima em vida a latejar nas reverberações
a cavalgar raios de sol a se fazer de girassol a
se transformar em coisas inanimadas
e sombrias
e o poeta é uma assombração
que despreza o sobrenatural

BH, 0140102022; Publicado: BH, 01101102022.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

não há uma ressonância ou uma reverberação

não há uma ressonância ou uma reverberação
não há nenhum frêmito trêmulo
ou uma flâmula que sejam
não há um eco dum equalizador natural
ou duma resposta dum sobrenatural
não há uma resposta nem do vento
é só o vento a passar incólume entre as coisas
é só a folhagem a vibrar na ramagem
os galhos a balançar
os caules fenderem fendidos
a flor a murchar no fim da tarde
cada um tem um arroubo outro um augúrio
outrem um presságio ou um silêncio de morte
que acompanham os solitários na solidão
não se ouve um arrastar de cadeira
ou um assoar de nariz entupido
ou uma tosse mesmo singela
ou um escarro ou um arroto cavernosos
o domingo parece um morro morto
ao lado dum lago morto
ao longe há uns latidos de cachorros
é o que dizem meus ouvidos ensurdecidos
nas minhas vistas meninas desvirginadas
as manchas nas paisagens
cofio o queixo embranquecido
a cabeça nua já empoeirada que enganava
empoderada leve igual a uma nuvem de pluma
densa igual a uma treva abissínia ou um
toco de ébano abandonado numa esquina cujos pensamentos abandonaram as moradias
evaporaram nas névoas das flacidezes
flatulências fumaças simulacros ondas
mentais que não encontram onde aportar
voltam vazias aos portos dos cais tais naus
há séculos à deriva em alto mar devido
a calmaria não descobrem continentes
nem fazem histórias das grandes navegações

BH, 0200502019; Publicado: BH, 01001102022.