sexta-feira, 1 de abril de 2011

Antônio Nobre, Lusitânia No Bairro Latino; BH, 01º0402011.

.................................SÓ
Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe coberto de pó,
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês d'Abril!
Que triste foi o seu fado!
Antes fôsse pra soldado,
Antes fôsse pro Brasil...

Menino e môço, tive uma Tôrre de leite,
Tôrre sem par!
Oliveiras que davam azeite,
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que São Lourenço fazia andar...
Formosas cabras, ainda pequeninas,
E loiras vacas de maternas ancas
Que me davam o leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhas brancas;
Meus bibes eram de sua lã.

Antônio era o Pastor dêsse rebanho:
Com elas ia para os Montes, a pastar.
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto delas era o meu jantar...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passa o dia
Naquele doce companhia.
Eram minhas Irmãs e tôdas puras
E só lhes minguava a fala
Para serem perfeitas criaturas...
E quando na Igreja das Alvas Saudades
(Que era da minha Tôrre a freguesia)
Batiam as Trindades.

Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me,
Eu persignava-me, rezava Ave-Maria...
E as doces ovelhinhas imitavam-me.

Menino e moço, tive uma Tôrre de leite,
Tôrre sem par!
Oliveiras que davam azeite...
Um dia, os castelos caíram do Ar!

As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
As velas do moinho... mas rôtas e velhas!

Que triste fado!
Antes fôsse aleijadinho,
Antes doido, antes cego...

Ai do Lusíada, coitado!

Veio da terra, mailo seu moinho:
Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,
Hoje, fazem-no andar águas do Sena...
É negra a sua farinha!
Orai por êle! Tende pena!
Pobre Moleiro da Saudade...

                                        Ó minha
Terra encantada, cheia de Sol,
Ó campanários, ó Luas Cheias,
Lavadeira que lavas o lençol,
Ermidas, sinos das aldeias,
Ó ceifeira que segas cantando,

Ó moleiro das estradas,
Carros de bois, chiando...
Flôres dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes minerais,
Ó choupos, ó luar, ó regas de verão!

Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?

Ó padeirinhas a amassar o pão,
Velhinhas na roca a fiar,
Cabelo todo em caracóis!
Pescadores a pescar
Com a linha cheia de anzóis!
Zumbidos das vespas, ferrões das abelhas,
Ó bandeiras! ó Sol! foguetes! ó tourada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Ó pregões d'água fresca e limonada!
Ó romaria do Senhor de Viandante!
Procissões com música e anjinhos!
Srs. Abades d'Amarante,
Com três ninhadas de sobrinhos!

Onde estais? Onde estais?
Ó minha capa de estudante, às ventanias!
Cidade triste agasalhada entre choupais!
Ó dobres dos poentes, às Ave-Marias!
Ó Cabo do Mundo! Moreira da Maia!

Estrada de S. Tiago! Sete-Estrêlo!
Casas dos pobres que o luar, à noite, caia...
Fortalezas do Lipp! Ó fôsso do Castelo,
Amortalhado em perrexil e trepadeiras,
Onde se enroscam como esposos as lagartas!
Sr. Governador a podar as roseiras!
Ó Bruxa do Padre, que botas as cartas!
Joaquim da Teresa! Francisco da Hora!
Que é feito de vós?
Faláveis aos barcos que andavam, lá fora,
Pelo porta-voz...
Arrabalde! marítimo da França,
Conta-me a história de Fermosa Magalona,
E do Senhor de Calais,
Mais o naufrágio do vapor Perseverança,
Cujos cadáveres ainda vejo à tona...
Ó farolim da Barra, lindo, de bandeiras.
Para os vapôres a fazer sinais,
Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras,
Dicionário magnífico de Côres!
Alvas espumas, espumando a frágua,
Ou rebentando, à noite, como flôres!
Ondas do Mar! Serras da Estrêla d'água,
Cheias de brigues como pinhais...
Morenos mareantes, trigueiros pastôres!

Onde estais? Onde estais?

Convento d'água do Mar, ó verde Convento,
Cuja Abadêssa secular é a Lua
E cujo Padre-capelão é o Vento...
Água salgada dêsses verdes poços,
Que nenhum balde, por maior, escoa!
Ó Mar jazigo de paquêtes, de ossos,
Que o Sul, às vezes, arrola à praia:
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos!
Corpo de virgem, que ainda veste a saia,
Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!
Noiva cadáver ainda com véu...
Ossadas ainda com os mesmos fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta...
Bôcas abertas que ainda soltam ais!
Noivos em núpcias, ainda aos beijos, abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...)
Ó defuntos do Mar! ó roxos arrolados!

Onde estais? Onde estais?

Ó Boa Nova, ermida à beira-mar,
Única flor, nessa viv'alma de areais!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar,
À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios!
Ó altar da Senhora, coberto de luzes!
Ó poentes da Barra, que fazem desmaios...
Ó Sant'Ana, ao luar, cheia de cruzes!
Ó lugar de Roldão! vila de Perafita!
Aldeia de Gonçalves! Mesticosa!
Engenheiros, medindo a estrada com a fita...
Água fresquinha da Amorosa!
Rebolos pela areia! Ó praia da Memória!
Onde o Sr. D, Pedro, Rei-soldado,
Atracou, diz a História,
No dia... não estou lembrado:
Ó capelinha do Senhor d'Areia,
Onde o Senhor apareceu a uma velhinha...
Algas! farrapos dos vestidos da Sereia!
Lanchas da Póvoa que ides à sardinha,
Poveiros, que ides para as vintes braças,
Sol-por, entre pinhais...
Capelas onde o Sol faz mortes, nas vidraças!

Onde estais?

                                      2

Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-a a tôda fôrça,
Chamam todos à uma: Agôra! agôra! agôra!
E, a pouco a pouco, as lanchas vão saindo
(Às vêzes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Içam a vela, quando já tem mar:
Dá-lhes o Vento e tôdas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:

Senhora Nagonia!

Olha acolá!
Que lindo vai com seu êrro de ortografia...
Quem me dera ir lá.

Senhora da Guarda!

(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!

Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Sêmos probes!

Senhor dos ramos Istrêla do mar!
Cá bamos!

Parecem Nossa Senhora, a andar.

Senhora da Luz!

Parece o Farol...
Maim de Jesus!

É tal qual ela, se lhe dá o Sol!

Senhor dos Passos!
Senhora da Ora!

Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matozinhos!

Os mestres ainda são os mesmos dantes:
Lá vai Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos Aflitos!
Mártir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus vos leve pela mão!
Bamos em paz!

Ó lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo Zé da Clara, os Remelgados,
O Jéques, o Pardal, na Nam te pedes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes
"As armas e os varões assinalados..."
Lá vai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ele corre! com que fôrça o Vento a impele:

Bamos com Deus!

Lanchas, ide com Deus! Ide e voltai com êle
Por êsse mar de Cristo...
               Adeus! Adeus! Adeus!

                                         3

Geoges! anda ver meu país de romarias
E procissões!

Olha essas môças, olha estas Marias!
Caramba! dá-lhes beliscões!
Os corpos delas, vê, são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis!
Têm nas orelhas grossas arreadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sôbre os seios entre cruzes, como espadas,
Além das seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faze-te Manel! Viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito,
Que hão de gostar!
Tira o chapéu, silêncio!
               Passa a procissão.

Estralejam foguetes e morteiros,
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão alto e enfeitados, os andores,
Parecem Tôrres de Davi, na amplidão!
Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo à frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos ao vago... não sei onde!
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mãos invisíveis levam-nos de rastos
Que êles mal sabem andar.

Esta que passa é a noite, cheia de astros!
(Assim estava, um certo dia, na Judéia)
Aquêle é o Sol! ( Que bom o Sol de olhos pintados!)
E aquela outra é a Lua Cheia!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva mão os Dados,
Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, tôda de arminhos,
(Vê! d'entre o povo em êxtase, olha-a a Mãe)
Leva, sorrindo, a Corroa dos Espinhos,
Criança em flor que ainda nos não tem,
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Mal sabe, a inocentinha,
Nas suas mãos, a Esponja deita mel;
Abelhas d'oiro tomam-lhe a dianteira.
Lá vem a Lança! A bainha
Traz ainda o sangue da Sexta-feira...

Passa o último, o Sudário!
O Corpo de Jesus, Nosso Senhor...
Oh que vermelho extraordinário!
Parece o Sol-pôr...
Que pena faz vê-lo passar em Portugal!
Ai que feridas e não cheiram mal...
E a procissão passa. Preamar de povo!
Maré-cheia do Oceano Atlântico!
O bom povinho de fato nôvo,
Nas violas de arame soluça, romântico,
Fadinhos chorosos da su'alma beata.

Trazem imagens da Função nos seus chapéus.

Poeira opaca. Abafa-se. E, no Céu ferro-e-oiro,
O sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!

Trombetas clamam... Vai correr-se o toiro.
Passam as chocas, boas mães! passam capinhas.

Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Águinha fresca da Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!

À porta dum casal, um tísico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro-mundo,
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as môscas, do moribundo.
Dança de roda mailas môças o coveiro.

Clama um ceguinho:
"Não há maior desgraça nesta vida,
Que ser ceguinho!"

Outro moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho...
Êste, sem braços, diz "que os deixou na pedreira..."
E, êsse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o Sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina...
Que lindos cravos para pôr na botoeira!

Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobs! Flôres! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Deliriums-tremens! Quistos!
Monstros, fenômenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam "uma esmola p'las alminhas
Das sua obrigações!"
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar...

Qu'é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão êles que não vêm pintar?

                                                           (Paris, 1891-1892.)

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