terça-feira, 26 de março de 2019

Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, Acaso; BH, 01°0202011.

No acaso da rua o acaso da rapariga loura.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vatagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se verso.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio se calhar,

Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se verso...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loura,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo  numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loura?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...

Só eu, de qualquer modo não sou o mesmo, e isso é o mesmo também.

                                                                                                                        27/3/1929

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