quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Antônio Nobre, Na estrada da beira; BH, 01º0902011.

Vai em seis meses que deixei a minha terra
E tu ficaste lá, metida numa serra,
Bem velhinha! que eras mais uma criança.
Mas tão longe de ti, neste País de França,
Onde mal viste, então, que eu viesse parar,
Vejo-te, quanta vez! por esta sala a andar.
Bates. Entreabres de mansinho a minha porta.
Virás tratar de mim, ainda depois de morta?
Vens de tão longe! E fazes, só, essa jornada!
Ajuda-te o bordão que te empresta uma fada,
Altas horas, enquanto o bom coveiro dorme,
Escapas-te da cova e vens, Bondade enorme!
Através do Marão que a Lua-cheia banha,
Atravessas, sorrindo, a misteriosa Espanha,
Perguntas ao pastor que anda guardando o gado,
(E as fontes cantam e o Céu é todo estrelado)
Para que banda fica a França, e ele, a apontar,
Diz: "Vá seguindo sempre a minha estrela, no Ar!"
E há de ficar cismando, ao ver-te assim, velhinha.
Que és tu a Virgem disfarçada em pobrezinha.
Mas tu, sorrindo sempre, olhando sempre os Céus,
Deixando atrás de ti os negros Pireneus,
Sobre os quais rola a Humanidade, nos Expressos,
Em certo dia ao fim de tantos (conto-os, meço-os)
Vindo de vila em vila, e mais de serra em serra,
Chegas!
               E cai e cai no soalho alguma terra:
Tua cova que vem pegada aos teus vestidos!
Ó Lua do Ceguinho! Amparo dos vencidos!
Alpendre do Perdão! ó Piedade! ó Clemência!
Singular fado o nosso, estranha coincidência;
Deixamos nossa Pátria ao mesmo tempo; tu
Adentro dum caixão, que era também baú,
Onde levavas as desgraças desta Vida;
Eu, num paquete sobre a vaga enraivada
(Sob a qual, entretanto, havia a paz das coisas,)
E nele o esquife do meu Lar, as minhas coisas,
E mais tu sabes, Santa! um saco de Misérias!
Mas a existência é um dia, esta vida são férias
E, mal acabam, te verei de novo... em breve!
E tu de novo me verás...
Ah! como deve
Ser frio esse teu lar debaixo da terra
Que teu cadáver de oiro ainda intacto encerra:
Ainda intacto e sempre; disse-me o coveiro
Que a tua cova era a única sem cheiro...
E assim te deixo, Santa! Santa! ao abandono,
Só, aos cuidados das corujas e do Outono!
Com este frio, horror! Senhora da Piedade!
Sem uma mão amiga e cheia de bondade
Que te agasalhe e faça a dobra do lençol,
Que abra a janela para tu veres o Sol,
Que logo de manhã, venha trazer-te o leite
E, à noite, a lamparina-esmalte como azeite!
Sem uma voz que vá ao pé da tua loisa,
Ansiosa, perguntar se queres alguma coisa,
Cobrir-te, dar-te as boas-noites... Sem ninguém!
Ai de ti! ai de ti! minha segunda Mãe!

Dobra em meu coração o sino da saudade.

Aqui, no meio desta fria soledade,
Evoco a Coimbra triste, em que aspecto moiro;
Entro, chapéu na mão, em tua Casa d'Oiro,
Em frente a um canavial, cheio de rouxinóis,
Que era nervoso de mistério, ao pôr-dos-sóis,
Vejo o teu lar e a ti, tão pura, tão singela,
E vejo-te a sorrir, e vejo-te à janela,
Quando eu seguia para as aulas, manhã cedo,
Ansiosa, olhando dentre as folhas do arvoredo,
Olhando sempre até eu me sumir, a olhar,
Que às vezes não me fosse um carro atropelar.
Vejo o meu quarto de dormir, todo caiado,
Donde ouvia arrulhar as pombas no telhado;
Oiço o relógio a dar as horas vagamente,
Devagar, devagar, como os ais dum doente;
Vejo-te à noite, pelas noites de Janeiro,
Na sala a trabalhar, à luz do candieiro,
Mas vejo o Emílio, indo a tactear, quase sem vista,
Mas que lembrava com seus olhos de ametista,
Meio cerrados, como ao Sol uma janela,
Que lindos olhos! uma pomba de Remela!
E andava à solta pela casa, não fugia,
Que aos livres ares o casulo preferia.
Mais vejo Aquela, cujo olhar são pirilampos,
Que tem o nome da mais linda flor dos campos,
Que tem o nome de tiveste... Vejo-a, ainda,
Como se ontem fosse, a Margareth, tão linda!
Vejo-a passar, sorrindo, e faz-me assim lembrar
No seu vestido rubro, uma papoila a andar.
Mais te vejo ainda ungir d'afagos minhas penas,
Mais te vejo voltar, à tarde, das novenas;
Mais oiço os sinos a dobrar, em Santa Clara,
E tu encomendando a alminha que voara...
Mais vejo os meus Contemporâneos, pela Estrada,
As capas destraçando, ao verem-te à sacada;
Mais vejo o Rui, na sua farda de artilheiro,
E tu mirando (o que são mães!) o dia inteiro!
Mais vejo o Sol, áurea cabeça do Senhor,
Mais vejo os cravos, notas de clarim em flor!
Mais vejo no quintal as papoilas vermelhas,
Mais vejo o lar das andorinhas, sob as telhas,
Mais oiço o tanque a soluçar soluços d'água,
Mais oiço as rãs, coaxando à noite a sua Mágoa,
Mais vejo o figueiral todo cheio de figos,
Mais vejo a tua mão a dá-los aos mendigos;
Mais oiço os guizos da mala-posta,
Mais vejo a sala de jantar, a mesa posta,
E tu, Senhora! presidindo à cabeceira,
E (o que a distância faz?) vejo-te na cadeira,
Com uma touca preta a cobrir-te os cabelos,
Que eram de neve, aos caracóis, estou a vê-los!
(Hei de corta-tos, alta noite, ao cemitério)
Mais vejo o Vasco sempre triste, sempre sério,
Dum lado e eu de outro...
              Que abençoado refeitório!
Mas tudo passa neste mundo transitório.
E tudo passa e tudo fica! A Vida é assim
E sê-lo-á sempre pelos séculos sem fim!
Ainda vejo a tua casa, e oiço os teus gritos
(Mas nas janelas e na porta vejo escritos.)
O Vasco é ainda sempre triste, sempre sério
(Mas mais ainda quando vem do cemitério.)
Meu quarto de dormir vejo-o no mesmo estado
(Mas não sei que é, não me parece tão caiado.)
A janela ainda tem o mesmo parapeito
(Mas já não sou "o estudantinho de Direito".)
Na sala de jantar ainda se estende a mesa
(Mas já não tem a mesa posta, a sobremesa.)
Vejo o relógio na parede como outrora
(Mas o ponteiro marca ainda a mesma hora.)
O candieiro ainda tem o petróleo e a torcida
(Mas apagou-se a luz a quando a tua vida.)
A diligência passa, à tardinha, a tinir,
(Mas já não tem os olhos teus para a seguir...)
Passam ainda pela Estrada os estudantes
(Mas não destraçam suas capas, como dantes.)
Vêm da novena ainda as moças e as donzelas
(Mas procuro-te, em vão, já não te vejo entre elas.)
As andorinhas ainda têm o mesmo fito
(Mas já fizeram três jornadas ao Egito).
Ainda dobra por defuntos e defuntas
(Mas não te vejo a ti a rezar de mãos juntas.)
Ainda já está o figueiral com figos,
(Mas não a tua mão a dá-los aos mendigos...)
O Rui ainda traz a farda de soldado
(Mas, agora já põe mais divisas, ao lado.)
As rãs coaxam ainda à noite, à beira d'água,
(Mas já não têm quem peça a Deus por essa Mágoa.)
O Emílio tem ainda esse olhar que maravilha,
(Mas, com seus olhos d'hoje, é uma pombinha da Ilha.)
Ainda lá estão os cravos, no jardim,
(Mas já não são as mesmas notas de clarim.)
Ainda oiço o tanque a soluçar a sua mágoa
(Mas já não acho tão branquinha a sua água.)
A Margareth ainda é a papoila de outrora
(Mas a papoila... já está uma senhora!)
Ainda lá estão as papoilas em flor
(Mas a Velhinha já não vai de regador...)
Meu coração é ainda o Vale de Gangrenas
(Mas já não tenho quem lhe planta as açucenas.)
Vive ainda o Sol, vivo eu ainda... (mas tu morreste!)
Tudo ficou, tudo passou...
               Que mundo este!

                                                             (Paris, 1891.)       

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