quarta-feira, 15 de junho de 2011

Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, Passagem das Horas; BH, 0150602011.

Nada me prende, a nada me ligo, a nada pertenço.
Todas as sensações me tomam e nenhuma fica.
Sou mais variado que uma multidão de acaso,
Sou mais diverso que o universo espontâneo,
Todas as épocas me pertencem um momento,
Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.
Fluido de intuições, rio de supor - mas,
Sempre ondas sucessivas,
Sempre o mar - agora desconhecendo-se
Sempre separando-se de mim, indefinidamente.

Ó cais onde eu embarque definitivamente para a Verdade,
Ó barco, com capitão e marinheiros, visível no símbolo,
Ó águas plácidas, como as de um rio que há, no crepúsculo
Em que me sonho possível -
Onde estais que seja um lugar, quando sois que seria uma hora?
Quero partir e encontrar-me,
Quero voltar a saber de onde,
Com quem volta ao lar, com quem torna a ser social,
Como quem ainda é amado na aldeia antiga,
Com quem roça pela infância morta em cada pedra de muro,
E vê abertos em frente os eternos campos de outrora
E a saudade como uma canção de mãe a embalar flutua
Na tragédia de já ter passado,
Ó terra ao sul, conterrâneas, locais e vizinhas!
Ó linhas dos horizontes, parada nos meus olhos,
Que tumulto de vento próximo me é ainda distante,
E como oscilas no que eu vejo, de aqui!

Merda p'ra vida!
Ter profissão pesa aos ombros como um fardo pago,
Ter deveres estagna,
Ter moral apaga,
Ter a revolta contra deveres e a revolta contra a moral,
Vive na rua sem siso.

                                                                                                   10/04/1923

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