segunda-feira, 27 de junho de 2022

negro chegou à senzala da casa grande no útero da mãe escrava

negro chegou à senzala da casa grande no útero da mãe escrava
cativa estuprada que trabalhou toda as idades
infantil adulta idosa a labutar sem parar
negro a viu cair morta no terreiro
e nem pode acompanhar o que se chamou de enterro
e o capataz disse que tinha muita coisa para se
fazer
e de longe viu o corpo roto da mãe ser jogado numa
vala rasa que mais parecia um esgoto mas com alguns
punhados de terra por cima
e não podia parar de trabalhar
e ali serviu desde menino aos serviçais da senzala
e aos capatazes da fazenda
e aos senhores de engenhos da casa grande até
à idade avançada também já anoso alquebrado
e o capataz chefe o chamou 
negro fostes vendido para uma fazenda na bahia
de trabalho mais leve aqui não aguentas a fazer quase nada
e lá pelo menos vais ganhar para pagares o que comes
pois o senhor patrão não vai te manter aqui só a comer
e a beber
e a dormir
e sem fazeres nada
negro mas senhor chefe capataz cheguei aqui
na barriga da mãe
e vivi
e trabalhei em todos os quintais
e terreiros
e terrenos
e colheitas
e tenho pouco tempo de vida
e me deixa morrer aqui
e deus te ajuda
o senhor me joga na mesma valeta junto de mãe
e de jeito nenhum
e amanhã teus novos donos vêm te buscar
e naquela noite negro não dormiu
e fez mumunhas
e sussurrou
e chorou em zumbidos mandingas
e soluçou rezas
e suspirou cantos
e cantigas
e ladainhas baixinhas
e lundus
e ramerrames
e amargamente não sonhou
e de manhã quando vieram buscá-lo
empacou
e fez birra
e pirraçou pois queria despedir
e agradecer o patrão senhor que relutou em
comparecer à presença do negro mas foi
negro disse patrão aqui vivi os meus dias bons
e maus
e como não sirvo mais fui vendido
e perto do rosto do senhor assoprou
e o patrão sentiu um bafo de bafio
negro partiu
naquela noite o patrão não dormiu
e tossiu
e espirrou
e escarrou
e suou
e sentiu dor a noite toda
e de manhã ao lavar o rosto sentiu uma espinha
na face que em poucos dias se tornou uma cratera
e que expôs a caveira que o matou em algums
meses sem nada curar
e do negro nunca mais se ouviu falar

BH, 01901102020; Publicado: BH, 0270602022.

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