Minha história
Era uma vez
Lembro-me muito bem
Era menino pequeno
Idos de sessenta e quatro
Levava o almoço do pai
Estava no trabalho na venda
Ao chegar lá
Não o encontrei
Só os tios Gaspar
Manoelzinho
Volta para casa
Já mandei avisar
Mandei um bilhete
Não o receberam
Seu pai foi preso
Comunista foi preso
Falou a vizinha para mim
Escondida dentro do quarto dela
Com medo na voz
Mamãe não estava em casa
Havia saído em peregrinação
Atrás do marido de quartel
Em quartel a procurar
A nossa casa virou pré-histórica
Cortaram a luz
Cortaram a água
Entupiram o esgoto
A gente cagava numa lata
Jogava no mato
Envenenaram a água
Que apanhávamos fora
Para trazer para casa
Quando bebíamos dela
Todos vomitávamos
Ou tínhamos diarreia
Lembro-me
Pai voltou depois
Voltou vivo morto-vivo
Quantos pais ficaram por lá
Mortos-mortos