quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Minha história; RJ, 02101101996; Publicado: BH, 0290202012.

Minha história
Era uma vez
Lembro-me muito bem
Era menino pequeno
Idos de sessenta e quatro
Levava o almoço do pai
Estava no trabalho na venda
Ao chegar lá
Não o encontrei
Só os tios Gaspar
Manoelzinho
Volta para casa
Já mandei avisar
Mandei um bilhete
Não o receberam
Seu pai foi preso
Comunista foi preso
Falou a vizinha para mim
Escondida dentro do quarto dela
Com medo na voz
Mamãe não estava em casa
Havia saído em peregrinação
Atrás do marido de quartel
Em quartel a procurar
A nossa casa virou pré-histórica
Cortaram a luz
Cortaram a água
Entupiram o esgoto
A gente cagava numa lata
Jogava no mato
Envenenaram a água
Que apanhávamos fora
Para trazer para casa
Quando bebíamos dela
Todos vomitávamos
Ou tínhamos diarreia
Lembro-me
Pai voltou depois
Voltou vivo morto-vivo
Quantos pais ficaram por lá
Mortos-mortos

Não faz sentido; RJ, 02101101996; Publicado: BH, 0290202012.

Não faz sentido
O cenário político nacional
Lutei tanto pelo fim do Delfim
Pedi tanto a cabeça do Delfim
Delfim está aí em mim
Pedi pela queda do Sarney
Sarney é presidente do senado
Abominei Antônio Carlos Magalhães
Hoje é um homem famoso
No brasil todo
Lutei contra não sei o que
Todos estão aí
A se aproveitar da mamata
Da negociata da corrupção
Vendem tudo que temos
Vendem até a nação
Penso que até o Pelé
Falou bem quando disse
Que o povo não sabia votar
O povo vota por estética
Por migalhas arroz feijão
Não vota por mudança
Não vota por revolução
Vota no mais bonito
No que tem mais opinião
Veiculada no domínio da mídia
Não tem sentido
O povo não tem sentido
Perde o que tem
Não derruba aqueles
Que querem que o povo
Não tenha nada
Não faz sentido

Estou eufórico; RJ, 02201101996; Publicado: BH, 0290202012.

Estou eufórico
Pela primeira vez em minha vida
Estou eufórico
Não é por bebida
Acredito firmemente
Que o maior sonho de minha vida
Está para ser realizado
Estou feliz
Pela primeira vez em minha vida
Sinto a felicidade dentro de mim
Sem ilusão
Sem falsidade
Sem enganação
Creio que agora
Encontrei a chave
O elo perdido
A porta aberta
A saída do fundo do buraco
A árvore plantada
Vai dar semente
É só jogar água fresca
Deixar na sombra
Agora vai brotar
Muitas flores frutos
Muitos troncos galhos
Muitos ramos folhas
Estou eufórico
Grito ao mundo todo
Quem me ouviu
Quem não me ouviu
Grito ao mundo todo
Quero que os mudos
Gritem comigo

Não consigo mais ler jornal; RJ, 02201101996; Publicado: BH, 0290202012.

Não consigo mais ler jornal
O jornal me afastou dos jornais
Agora tenho ojeriza
Tenho nojo de jornal
Jornal vendido
Comprometido enganador
Jornal comprado
Segue o rumo
Que o vento manda
Não se importa com o povo
Não tem escrúpulo
Não tem moral
Caráter nem pensar
Jornal para cego
Surdo mudo
Jornal para analfabeto
Ilude o povo
Desinforma não informa
Confunde a mente popular
Abre espaço para corruptos
Políticos hipócritas
Empresários ladrões
Abre espaço para aqueles
Que metem a mão no caldeirão
Sugam todo o sangue da nação
Limpam as mãos
Na camisa do povo
Agora estou salvo
Não serei mais alvo
Desse infortúnio jornal

Tudo o que for feito; RJ, 02201101996; Publicado: BH, 0290202012.

Tudo o que for feito
Merece ser feito
Como se fosse
Uma obra de arte
Uma obra-prima
Tem que ser sangrado
Gota à gota
Tem que ser dissecado
Igual a um cadáver
Ser examinado
Como se examina
Uma bela mulher
Que por sua vez
Deve ser adorada
Como se fosse
A única santa
Que temos no firmamento
Mesmo que depois de feito
For verificado
Que não se transformou
Numa obra-prima
Numa obra de arte
Deve ser guardado
Que um dia depois
A gente dá um jeito
É só procurar a não ver defeito
Pois o feio
Pode ser belo
Se for belo
Pode ser bom
É um estado de espírito

Depois que faço as coisas; RJ, 02201101996; Publicado: BH, 0290202012.

Depois que faço as coisas
Não gosto nem de olhar para ver
É igual a uma comida
Que faço sem provar
Não sei o tempero
Não sei o gosto
Nem sei o sabor
Da mesma forma
Faço qualquer coisa
Não importa o que
Esteja a fazer
Mesmo que não tenha tema
Não tenha conteúdo
Não tenha nada
Seja vazio igual a uma cabeça
Seja duro igual a um coração
Seja fraco igual a um homem
Continuo a ignorar
Pois ao ser ignorante
Medíocre insensato
Não ter a sensibilidade adequada
Para ficar indignado
Fazer algo pela humanidade
Veja a África
Estou castrado
Veja o Oriente Médio
Estou empalado
Veja o Leste europeu
Estou abismado
Veja tudo,
Estou nada
Veja o Brasil
Estou entristecido

Alphonsus de Guimaraens, Electa Ut Sol V; BH, 0290202012.

De Dona Mística 


Quantas vezes no caos destes meus longos dias 


Eu ouço a tua voz de perdão e de queixa, 


E te vejo surgir, à hora em que aparecias,


Solta a faixa da tua ensombrada madeixa!


Tarde louca de abril; gemem ave-marias 


Pelas naves; o luar o mundo inteiro enfeixa


Num ramalhete de ouro estelar: nostalgias 


Que o ocaso em funeral pelo infinito deixa. 


Do alto onde estás, volves o teu olhar clemente: 


Andas no céu. Toda a minha Alma é um sol no poente, 


Onde morre a visão dos meu dias felizes… 


Uma saudade cruel o coração me corta; 


Recordo-me de ti como de alguma morta 


Que me tivesse amado em longínquos países…

1933: Brecht foge da Alemanha, Portal Vermelho; BH, 0290202012.

Bertolt Brecht fugiu da Alemanha nazista em 28 de fevereiro de 1933, um dia após o incêndio do Reichstag. O escritor sabia que logo começaria a caça à esquerda e aos opositores do regime de Hitler.



Brecht
Brecht
No dia em que o escritor Bertolt Brecht deixou a Alemanha, em 28 de fevereiro de 1933, a notícia nem sequer saiu no jornal. Ele não anunciara que iria deixar o país, e o tema das manchetes do dia era outro: o incêndio do Reichstag, na véspera.

A polícia responsabilizou a esquerda e logo apresentou o suposto autor do incêndio. Os nazistas aproveitaram para prender um grande número de sindicalistas, socialistas e comunistas, que foram enviados aos primeiros campos de concentração, improvisados para esse fim.

Visionário que conhecia o perigo

Como nenhum outro intelectual, Brecht previra a catástrofe iminente, o que aconteceria se os nazistas assumissem o poder na Alemanha. Sua Lied vom SA-Mann (Canção do homem da SA) deixa transparecer toda a sua clarividência.

Nela, ele descreve como a depressão no final da década de 1920, as batalhas de rua e as eternas crises de governo culminariam nas barbáries do Terceiro Reich. "Dormi de fome, com o estômago roncando. Pegando no sono ouvi gritarem: 'Acorda Alemanha'. E vi muitos marcharem gritando 'Vamos ao Terceiro Reich!' Eu não tinha nada a perder e fui com eles, sem me importar para onde."

Em 1933, aconteceu o que se temia e Adolf Hitler tornou-se chanceler do Reich. No mais tardar, após a tenebrosa marcha com tochas pelo Portão de Brandemburgo, em Berlim, em honra ao novo detentor do poder, ficou claro que a sombria intuição de Brecht logo se transformaria em realidade.

O êxodo dos intelectuais
Não demorou muito e começou o êxodo dos intelectuais alemães. Nem todos, porém, quiseram ou puderam fugir a tempo, como o detentor do Prêmio Nobel da Paz Carl von Ossietzky, que foi levado a um campo de concentração e morreu em consequência das torturas.

Outros, como o escritor Erich Kästner, se retiraram da vida pública e assim sobreviveram ao "reino de mil anos" que Hitler pretendia instituir. A história, contudo, se lembra mais dos que quiseram conseguiram escapar: Albert Einstein, os escritores Lion Feuchtwanger, Thomas Mann, Erich Maria Remarque, os músicos Kleiber, Busch, Klemperer e muitos outros.

Brecht foi um dos primeiros a deixar o país, por saber o que o aguardava quando o partido de Hitler começasse a colocar em prática suas ameaças. Num poema em prosa, ele expôs as razões de sua perseguição: "Quando me forçaram ao exílio, os jornais publicaram que foi por uma poesia minha, ridicularizando o soldado da Primeira Guerra Mundial. Agora, quando eles preparam uma nova guerra mundial, decididos a superar as monstruosidades da última, é quando se persegue ou se mata gente como eu, por delatar os seus atentados".

A lenda do soldado morto


A poesia a que Brecht se refere, que teria inspirado o ódio dos nazistas, é Legende vom toten Soldaten (Lenda do soldado morto), um poema pacifista que se refere à Primeira Guerra Mundial.

Como faltassem soldados ao exército do Império Alemão, decidiu-se desenterrar um soldado que morrera, vesti-lo com um novo uniforme e arranjá-lo para que passasse pelo exame médico e fosse mandado de volta ao front. Sob os aplausos do clero e dos representantes do grande capital, o defunto foi enviado ao campo de batalha para morrer como herói.

Os nazistas não odiavam apenas o poeta Bertolt Brecht, odiavam também o seu pacifismo e o fato de ele ser comunista. Na sua Balada da árvore e dos galhos, de 1931, Brecht antecipou o comportamento assassino das hordas nazistas, no dia em que pudessem agir livremente.

Fuga para a Dinamarca

Com sua visão, Brecht decidiu fugir assim que soube do incêndio do prédio do Reichstag. Um dia depois, na manhã de 28 de fevereiro de 1933, deixava Berlim em direção a Praga. Da capital da então Tchecoslováquia foi a Viena, de lá até a Suíça e a seguir para a Dinamarca, onde se radicou por alguns anos.

O exílio o levaria ainda à Finlândia e aos Estados Unidos. O autor de A Ópera dos três vinténs e de outras obras inesquecíveis conseguiu escapar de Berlim antes de começar a primeira onda de prisões do novo regime, que afundaria a Alemanha e o mundo numa guerra sem precedentes.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Noel Rosa, Conversa de botequim; BH, 0280202012.


Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada.
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol.
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa.
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos.
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas,
Um isqueiro e um cinzeiro.
(Refrão)
Seu garçom faça o favor de me trazer depressa...
Telefone ao menos uma vez
Para três quatro, quatro, três, três, três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório.
Seu garçom me empresta algum dinheiro,
Que eu deixei o meu com o bicheiro.
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa
No cabide ali em frente.
(Refrão)
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada.
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol.
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.

Alphonsus de Guimaraens, Initium; BH, 0280202012.

Tanta agonia, dores sem causa, 
E o olhar num céu invisível posto… 
Prantos que tombam sem uma pausa,
Risos que não chegam mais ao rosto… 
Noites passadas de olhos abertos, 
Sem nada ver, sem falar, tão mudo… 
Alguém que chega, passos incertos, 
Alguém que foge, e silêncio em tudo… 
Só, perseguido de sombras mortas, 
De espectros negros que são tão altos… 
Ouvindo múmias forçar as portas, 
E esqueletos que me dão assaltos… 
Só, na geena deste meu quarto 
Cheio de rezas e de luxúria… 
Alguém que geme, dores de parto,
- Satã que faz nascer uma fúria… 
E ela que vem sobre mim, de braços 
Escancarados, a agitar as tetas… 
E nuvens de anjos pelos espaços, 
Anjos estranhos com as asas pretas… 
E o inferno em tudo, por tudo o abismo 
Em que se me vai toda a coragem… 
“Santa Maria, dá-me o exorcismo 
Do teu sorriso, da tua imagem!” 
E os pesadelos fogem agora… 
Talvez me escute quem se levanta: 
É a lua… e a lua é Nossa-Senhora, 
São dela aquelas cores de Santa!

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Noel Rosa, Com que roupa? BH, 0270202012.


Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar
Pois esta vida não está sopa
E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Agora eu não ando mais fagueiro
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar
Eu já corri de vento em popa
Mas agora com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo
Eu vou acabar ficando nu
Meu terno já virou estopa
E eu nem sei mais com que roupa
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?

José Saramago, Exercício militar; BH, 0270202012.

És campo de batalha, ou simples mapa? 
És combate geral, ou de guerrilhas? 
Na cortina de fumo que te tapa, 
É paz que vem, ou novas armadilhas?
Fechado neste posto de comando, 
Avanço as minhas tropas ao acaso 
E tão depressa forço como abrando: 
Capitão sem poder, soldado raso.
A lutar com fantasmas e desejos, 
Nem sequer sinto as balas disparadas, 
E disponho as bandeiras dos meus beijos 
Em vez de abrir crateras a dentadas.

José Saramago, Balada; BH, 0270202012.

Dei a volta ao continente
Sem sair deste lugar 
Interroguei toda a gente 
Como o cego ou o demente 
Cuja sina é perguntar
Ninguém me soube dizer
Onde estavas e vivia
(Já cansados de esquecer 
Só vivos para morrer 
Perdiam a conta aos dias)
Puxei da minha viola 
Na soleira me sentei
Com a gamela da esmola
Com pão duro na sacola 
Desiludido cantei
Talvez dissesse romanças 
Ou cantigas de encantar 
Aprendidas nas andanças 
Das poucas aventuranças 
De quem não soube esperar
Andavam longe os teus passos 
Nem as cantigas ouviste 
Vivias presa nos laços 
Que faziam outros braços 
No teu corpo que despiste
Quanto tempo ali fiquei 
Sangrando os dedos nas cordas 
Quantos arrancos soltei 
Nesta fome que criei 
Nem eu sei nem tu recordas 
Porque nunca tos contei
Até que um dia cansaste 
(Era pó não era monte) 
Outra lembrança deixaste 
E nas águas desta fonte 
A tua sede mataste 
— O arco da minha ponte

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

José Saramago, Poema da boca fechada; BH, 0240202012.

Não direi: 
Que o silêncio me sufoca e amordaça. 
Calado estou, calado ficarei, 
Pois que a língua que falo é doutra raça.
Palavras consumidas se acumulam, 
Se represam, cisterna de águas mortas, 
Ácidas mágoas em limos transformadas, 
Vasa de fundo em que há raízes tortas.
Não direi: 
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem, 
Palavras que não digam quanto sei 
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas, 
Nem só animais boiam, mortos, medos, 
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam 
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi, 
Crispadamente recolhido e mudo, 
Que quem se cala quanto me calei 
Não poderá morrer sem dizer tudo.

Amei-te; RJ, 0280301988; Publicado: BH, 0240202012.

Amei-te
Veja bem
Até amei-te
Coisa que
Nunca havia feito
Pensei que sentia paz
Que era feliz
Que a felicidade
Era o meu nome
Era o teu nome
Com o passar do tempo
Com a vida que levava
Que levávamos
Então vi
O que não via
O que não sentia
Há muito tempo
Era um cego
Era uma estátua
Não podia sentir
Adeus agora
Até nunca mais
Leve na lembrança
Que um dia
Amei-te
Bem ou mal
Certo ou errado
Fraco ou forte
Amei-te
De leste a oeste
De sul a norte

Sou um louco; RJ, 02201101996; Publicado: BH, 0240202012.

Sou um louco
Ontem ao pensar
Percebi que sou louco
Minha mente é insana
Desocupada vazia
Minha mente é fria
Como uma sepultura
Em noite de inverno
Sou um louco
Vou terminar meus dias
Em salas de hospícios
Em camisa de força
De dias chuvosos sombrios
Sou um louco viste
Todo tipo de loucura
Habita em mim
Desequilibrado débil
Psicopata paranoico
Complexado estéril
Neurótico urbano em pânico
Voraz para devorar um prato de comida
Olho maior que a barriga para beber
Só louco se comporta assim
Sem moderação modos
Barriga grande cheia
Cabeça pequena vazia
Pensamentos desfeitos
Neurônios atacados corroídos
Pela loucura acentuada
Estou agora preso às masmorras
De minha mente enferma

Atentado tentei contra a minha existência; RJ, 02201101996; Publicado: BH, 0240202012.

Atentado tentei contra a minha existência
Fiz tudo que não deveria fazer
Enchi-me de gordura sal
De açúcares de massas;
Sou um atentado
Bebi de tudo que não poderia beber
Perdi meu fígado
Pâncreas rins
Meu estômago virou um abismo
Dilacerado infinito
Nem as paralelas estão lá
Meus dentes careados
Mordem qualquer coisa
Ou às vezes nem mordem
Só vou a engolir
Do jeito que chega à boca
Sou um digno de pena
O bombeiro falou comigo
O capitão o guarda
A assistente social
O pastor da igreja
Pedi ao padre
Preza por minh'alma
Acenda uma vela
Reza um Credo
Um Padre Nosso
Canta um cântico
Uma cantiga antiga
Vou atentar contra a minha existência,
Numa tentação
Vou dormir um sono
Sonhar um sonho
Não acordar mais

É preciso que alguém faça alguma coisa; RJ, 02201101996; Publicado: BH, 0240202012.

É preciso que alguém faça alguma coisa
Por exemplo não sei fazer nada não tenho
Profissão aptidão nada aprendi durante o
Período no qual vivi aqui não vai ser agora
Depois de morto que vou fazer alguma
Coisa em vida fui demagogo egoísta
Ambicioso hipócrita imbecil agora sou
Poeira voltei ao pó agora sou lama sou
Esterco algum vivo por aí que faça
Alguma coisa em vida fui medíocre
Sem amigos sem parentes sem paz
Sem amor agora o que é que sou?
Um amontoado de ossos ossos velhos
Enegrecidos jogados numa caixa dum
Cemitério qualquer nem o meu coveiro
Vem me visitar mais inda não colocaram
Outro na vaga de minha sepultura é
Preciso que alguém faça alguma coisa
O que estou morto aqui vou é morrer de rir

Porque choram as crianças? RJ, 02201101996; Publicado: BH, 0240202012.

Porque choram as crianças?
Alguém pode me responder?
Porque se perderam dos seus pais
Alguém sabe onde estão?
Estão mortos então estão
Enterrados vivos
As crianças são órfãs
De pai de mãe
Choram até à morte
Choram de fome
São vítimas das guerras
São vítimas dos homens
Deixai vir a mim os pequeninos
Não os impeçais de seguir os caminhos
Porque dos tais é o direito à vida
Ao amor à paz
Porque choram as crianças?
Porque as deixamos no meio da rua
Porque as matamos de pancadas
De violência sexual de extermínio
É mais fácil extermina
Do que educar
Deixamos que virem comidas de moscas
De baratas de ratos de mosquitos
Deixamos que virem carniças
Carnes podres para urubus
Deixamos que sejam jogadas nas sarjetas
Deus onde estás que não vês
Essas crianças que nós não deixamos crescer?
Pois temos medo que tomem nosso lugar
Porque estou a chorar agora
Se meus olhos são secos como o deserto?

Não me preocupo em fazer uma obra-prima; RJ, 060301995; Publicado: BH, 0240202012.

Não me preocupo em fazer uma obra-prima
Não me preocupo em fazer um clássico
Não me preocupo em fazer uma obra de arte
Preocupo-me em ser normal
Ser humano mediano
A falar sobre o cotidiano
Sem inovar nad
Nada é novo
Tudo é todo
O que imaginar em pensar fazer
Milhões já estão a penar a pensar a fazer,
Antes mesmo de começar
É melhor meu caminho trilhar
Buscar a luz do sol
Das estrelas do luar
De dia um beija-flor
À noite um vaga-lume
Vagabundo pirilampo
Ou um morcego
Ou uma coruja
Uma mariposa
Qualquer ser noturno
Que vaga na escuridão
Inda estou para parir
Se tiver de ser um clássico
Terá porvir
Se tiver de ser uma obra-prima
Abençoada aceita
Bem será
Se tiver de ser uma obra de arte
As galerias mentais a exporão
Em suas paredes eternas
O negócio é não me preocupar
Deixar fluir
Igual água
A jorrar na fonte

Lá se vão os miseráveis; RJ, 060301995; Publicado: BH, 0240202012.

Lá se vão os miseráveis
A empurrar seus carros sujos
Parecem comboios
De exércitos destruídos
Em guerras intermináveis
Quem são?
Não sabemos nós
A sociedade dum modo geral
Não interessa em saber
Quem são
Os chamam apenas
De os miseráveis
Passam
Os cães ladram
Não gostaria
De ter neste momento
Toda a sensibilidade
Que tenho agora
Para não ter que pensar
Nos miseráveis que vão lá
Vão tristes esquálidos
Olhares perdidos
Vozes de vácuos nas gargantas
Barrigas vazias
Cabeças pendentes
Cães vagabundos os acompanham
Por que nem Deus nem os anjos
Nem os santos e nem os demônios
Querem a companhia
Dos miseráveis que lá se vão
Todos os ignoramos
Fingimos que não são
No fundo da mente pensamos
Lá se vão os miseráveis

As costas do pai; NL, 0120202010; Publicado: BH, 0240202012.

As costas do pai
Sentado estava o pai na maca
Do hospital da poltrona o
Observava estava de costas
Para mim sem camisa as costas
Do pai eram eretas os ombros
Eram altos mas não vi os sinais
De tantas chibatadas que levaram
Os antigos negros relhados nos
Pelourinhos a cabeça era de touro
De touro negro não sei de quais
Rincões d'África de pé era o
Verdadeiro Colosso de Rhodes
Dominava toda a região o tronco
Era feito de árvore que o vento não
Balançava as canelas finas porém
De ferro raramente vistas canelas
De capoeirista Firmo a estrutura
De gigante de Maratona porte de
Atleta grego venerado igual a
Um deus do Olimpo às costas do
Pai cravei nas memórias das
Retinas nas lembranças das
Meninas dos olhos foi a
Única vez que passaram por meus
Cristalinos nunca tinha visto
O pai desnudo nunca o vi em
Trajes mais sumários ou sem a
Camisa impressionei-me com
As suas costas tentei decifrar ali
Seus mistérios segredos medos
Suas histórias berços destino
Não o tenho mais entre nós
Eu os meus eus ficamos órfãos
Daquelas costas de Apolo negro do
Muro das lamentações dos nossos conflitos

José Saramago, Em violino fado; BH, 0240202012.

Ponho as mãos no teu corpo musical 
Onde esperam os sons adormecidos. 
Em silêncio começo, que pressente 
A brusca irrupção do tom real. 
E quando a alma ascendendo canta 
Ao percorrer a escala dos sentidos, 
Não mente a alma nem o corpo mente. 
Não é por culpa nossa se a garganta 
Enrouquece e se cala de repente 
Em cruas dissonâncias, em rangidos 
Exasperantes de acorde errado.
Se no silêncio em que a canção esmorece 
Outro tom se insinua, recordado, 
Não tarda que se extinga, emudece: 
Não se consente em violino fado.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Poeta não vai para o céu; RJ, 02201201996; Publicado: BH, 0230202012.

Poeta não vai para o céu
Não toma tapa numa face da cara
Nem vira a outra face
Para levar outro tapa
Cobiça a mulher do próximo
Mente peca paca
Poeta é imortal
Deus não gosta de concorrência
Amaldiçoou o poeta
O céu não é lugar ideal
Para receber um poeta
Poeta mata rouba
Vai contra os Dez Mandamentos
Faz tudo ao contrário
Como manda a sociedade
O figurino da moda
Não leva desaforo para casa
Dá porrada briga quebra osso
Lugar de poeta é aqui o inferno
O sofrimento a solidão
A areia do deserto
O calcanhar de alguém
A esmagar a cabeça dele
Na poeira da estrada ou
Nas pedras do caminho
Sem amor
Sem paz
Sem destino
Aqui jaz
Um macabro poeta
Um ser decrépito disforme
Que quer que seja igual
Mas não é poeta

Contraste no bom estado do Maranhão; RJ, 02201201996; Publicado: BH, 0230202012.

Contraste no bom estado do Maranhão
De cidadezinha do interior
Que de legado nos deixou
O sertanejo João do Vale
Que cantou o povo
Encantou o povo
Povo humilde simples
Camponês matuto da roça
Com tanta riqueza interior
Tanta beleza na poesia
João do Vale nos deixou
Chorei de dor
Chorei mais ainda ao lembrar
Que o Maranhão também imortalizou
O famigerado José Sarney sua trupe
O nefasto ex-grileiro fora da lei
O tomador de dinheiro do povo
A antítese em pessoa
O aético sobrevivente
O servidor da burguesia da elite
Representante maior
Dos interesses contrários
Aos interesses do povo
O que fizeram os Sarneys pelo Maranhão?
O que fizeram os Sarneys pelo Brasil?
Delapidaram nossos tesouros
Tesouro maior do que os Sarneys
Nos deixou o João o João do Vale
Um representante da nação
Que José Sarney de repente
Tinha até vergonha
De apertar a mão
Pois a sua mão suja
Poderia manchar
A mão sertaneja do João

Hoje sei; RJ, 0280301988; Publicado: BH, 0230202012.

Hoje sei
Onde estou
Não estou mais
Naquela merda
Que estava antes
Hoje sei
O que é que sou
Não sou mais
Aquela bosta
Que era antes
Tenho endereço
Número de identidade
Título de eleitor
Tenho telefone
Conta no banco
Caderneta de poupança
Tenho ações
Um bom emprego
PIS CPF FGTS
Diploma na mão
Vou à igreja
Rezo o Padre Nosso
À Ave Maria
Penso que
Quando morrer
Devo ir para o céu
Sei um pouco de tudo
Sei um pouco de nada
Hoje sei que existo
Entrei para o Sistema
Entreguei-me integrei-me
À Sociedade adaptei-me
Ao seu Capitalismo
Ao meio de vida,
Que leva à ruína
Para se ter algum Capital
Fazer parte do capitalismo

Meu tempo passou; RJ, 0270501995; Publicado: BH, 0230202012.

Meu tempo passou
Não está ao meu lado
Mau tempo chegou
Agora sou bola murcha
Um balão apagado
O tempo mesmo
Nunca esteve ao meu lado
Curvou-me a coluna
Pesou mil toneladas
Fechou meus olhos
Apagou minha voz
Lançou-me no passado
Tirou da memória
Todas as boas horas
Que tive um dia
Meu tempo passou
Logo sou o
Que durante todo o tempo
Queria viver
Fiquei a esperar
O tempo certo
Nada aconteceu
Meu tempo morreu
Fui até ao enterro
Com missa tudo
Com cantochão
Sai daí barrigudo
Careca barbudo safado
Bunda mole da peia
Abre alas cagão
Sai da frente palerma
Agora chegou a hora
Da nova geração
Cheia de nove-horas

Cheguei à conclusão; RJ, 0270501995; Publicado: BH, 0230202012.

Cheguei à conclusão
Que tenho que crescer
De mal de amor
Não vou mais sofrer
Não vou mais morrer
Não sou mais jovem
Já cansou o coração
Levou tanta porrada
Levou tanta surra
Igual a um menino levado
Que apanha todo dia
Mesmo sem saber porque
Agora decidi
A fazer o que mandou
Pendurar as chuteiras
Ficar no banco de reservas
Assistir ao jogo da arquibancada
Virar gandula
Ou me esconder na hora
Que o pau quebrar
É lá o meu lugar
No covil dos velhos senis
Dos fracos covardes
Dos aposentados da vida
Caquéticos adoentados
Cheguei à conclusão
É lá naquela sepultura
Que vou enterrar
Este coração
Que não aprendeu
A encontrar o seu lugar
Que em qualquer peito
Queria pulsar quasar

Moço; RJ, 0260501995; Publicado: BH, 0230202012.

Moço
Queres comprar um poema?
Moço
Queres comprar uma poesia?
Moço
Não quero cheque
Quero como pagamento
Só um pedaço de pão
Para aplacar minha fome
Um copo d'água
Nada mais quero
Quero apenas que o senhor
Aceites esta poesia
Este poema pequeno
Que um poeta mendigo
Está a te oferecer
Não quero muito
Quero só que o moço
Leves daqui este escrito
Que me machuca muito
Fere-me a alma
Que me destrói o espírito
Talvez noutra cabeça
Moura
Talvez noutro crânio
Magnon
Terá mais sentido
Terá mais aceitação
Moço
Leves esta elegia
Que é de graça
Não precisas pagar
É muito triste
Sinto que vou chorar

Paulinho da Viola; RJ, 0260501995; Publicado: BH, 0230202012.

Paulinho da Viola
Tem um neguinho bom
De voz mansa macia
Um olhar sereno
Um coração de tranquilidade
Fala com o pensamento
Sussurra quando grita
Não canta
Acaricia com a voz
Os mais belos sambas
Que o ouvido humano
É capaz de captar
Não falo doutro
Falo dele mesmo
Da Viola ou do Cavaquinho
Do Violão ou Tamborim
Paulinho é assim
A desfolhar inspiração
Por onde quer que passe
A mostrar samba
Como é que se deve ser
Clássico erudito
Pesquisado estudado
Tudo muito bem dosado
Como ninguém sabe fazer
Como ninguém sabe cantar
Só mesmo Paulinho
Samba com o olhar
Batuca com o coração,
É o da Viola meu irmão

José Saramago, Retrato do poeta quando jovem; BH, 0230202012.

Há na memória um rio onde navegam 
Os barcos da infância, em arcadas 
De ramos inquietos que despregam 
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado 
No silêncio da lisa madrugada, 
Ondas brandas se afastam para o lado 
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto, 
À hora que mais conta duma vida, 
Um acordar dos olhos e do tacto, 
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto 
Que do fundo rompeu desta memória, 
E tudo quanto é rio abre no canto 
Que conta do retrato a velha história.