sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

alguém para dizer alguma coisa

alguém para dizer alguma coisa
num momento de aflição 
e a rua está vazia
e a avenida perdida
e a cidade fantasma
e rente aos muros as sombras esvanecem-se
e não se ouve um assobio de ave
ou um pio dum piado
ou um cicio de serpente
ou um sibilo de víbora
ou um chacoalhar de cascavel
e ninguém se apresenta no deserto
nenhuma miragem no oásis
e o que resta lamenta
ou chora melancolia
ou implora em preces
e não se diz a palavra chave
ou a palavra mágica
ou a senha que num golpe de lucidez
destravou o universo
e organizou o caos no organismo
e perfilou nos estados da matéria
a esperança de unificar os átomos
e acelerar as partículas das moléculas
numa geração de energia nunca vista
nem no sol que de milênios em milênios
preserva a vida onde a morte impera
e espera aí parece que agora um ser
foi capaz de dizer a palavra reveladora
e a conjectura escancarou a lucidez
e as soluções engoliram os mistérios
e espatifaram os enigmas
e gravou-se no paredão com o fogo do núcleo
o que é o universo para quem pode criar um universo?
e as palavras invencíveis
e invulneráveis continuam lá para quem
quiser ler
ou gravar outra inscrição com fogo na face
da montanha de diamante
e nunca mais se esperou de alguém alguma
coisa para se ouvir pois todas as coisas estão
aí ditas com suas mensagens infinitas

BH, 01601002022; Publicado: BH, 03001202022.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

alguém sabe o segredo duma oração

alguém sabe o segredo duma oração
ou duma prece
ou duma reza simples mas que
sejam perfeitas?
a minha avó sabia
e rezava para cachumba
e orava para espinhela caída
e benzia com arruda de guiné para cobreiro
e erisipela
e fazia preces para assombrações
e mais ladainhas aos santos
e santas que
menino desconhecia
e hoje ainda desconheço
e a minhs avó rezava para corpo fechado
e para os corpos das putas da rua franisco sá
muitas vezes retalhados às giletadas
e às navalhadas
e até punhaladas
e várias vezes deparei com putas no casebre no qual minha avó morava
e malino até bolinavla algumas
às escondidas
e a minha avó bebia cachaça
e fumava cigarro de palha
e mascava fumo de rolo
e enquanto minha mãe fazia compras
surrupiava alguns produtos dos vendeiros
das feiras
e brinquedos para mim
das lojas da rua direita do centro da cidade
e não deixava a minha mãe me bater
e sempre me levava às procissões
e às missas com o padre a me abençoar
várias vezes contrariado
e me ensinava a fumar
ao me mandar acender o cigarro de palha
no fogão à lenha
e me ensinava a beber
ao me dar o restinho de pinga que ficava
no fundo da canequinha
e me ensinou a comer pimenta
da pimenteira plantada à porta do barracão
de pau a pique que ficava à beira da rua do
pau velho sentido baixinha na cidade de
teófilo otoni
e não tinha banheiro
e as necessidades eram jogadas pela
janelinha do fundo ao lado dum espaço
entre o barraco
e o barranco
e a água era de pote
ou de moringa
mas era um lugar que mais tarde na minha adolescência da mocidade
atravessava toda a cidade
satisfeito para visitar

BH, 01401202022; Publicado: BH, 02701202022.

e um dia ainda hei de viver

e um dia ainda hei de viver
e nem que seja por um segundo
e o mundo então se regozijará
de que vivi um segundo
e de novo de geração em geração
louvarei os antepassados que
sustentaram os meus ombros
e os meus ancestrais que
guiaram os meus passos
e os meus antecedentes que
deram os caracteres
para os meus descendentes
e seguirei mesmo que
não seja um valente pois
preciso seguir a poesia
e necessito seguir o poema
e regar o pomar
e molhar o jardim
e colher as flores
e salvar a flora
e abençoar a fauna
e da natureza morta fazer uma obra-prima
de natureza viva
e mais obras de arte
e mais obras de belas artes
e pararei numa esquina já livre da mortalha
da encruzilhada
e não precisarei de pedir mais licença
se serei o ser
e a lei
e o áulico
e o vassalo bastardo fidalgo herói
sem vitória
sem glória
sem história
ou bastião
ou baluarte
ou panteão
e todo o universo será o resumo num ponto
que num caos gerará outro universo
e com um ser completo que
se libertou de ser complexo

BH, 01501202022; Publicado: BH, 02701202022.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

tudo o que se faz hoje

tudo o que se faz hoje
se não for o mais superficialmente possível
não há um like
ou uma única curtida
ou um compartilhamento
e se for algo que requer raciocínio
ou razão
ou noção
ou discernimento
e interpretação
e pensamento
aí o certo é passar em brancas nuvens
e todos somos contaminados por essa
preguiça moderna
e o mais trabalhoso que podemos fazer no
nosso esforço é ver
e ver o corpo nu
e ver a bunda dum
e ver as nádegas doutro
e as genitálias doutras
e os genitais doutros
e as palavras chulas
e os comportamentos vis
e as atitudes vãs
e os gestos vãos
e as expressões ocas
e os ares de vácuos
e duma hora para outra são milhões
de visualizações
e dum dia para o outro são mais milhões
de viralizações nas mídias das redes sociais
das vadiagens
e das vagabundagens afins
e das vergonhas que não envergonham
nem padres
nem pastores
nem homens
nem mulheres
e quanto mais explícito o fato
maior é o boato
e corre rápido no vazio como um quem que
tem pernas curtas
e rápidas
e que atingem ao mesmo tempo corações
e cérebros aflitos sem sentimentos
e sem sentidos
e qualquer argumento gera diploma a um 
jumento tanto que temos um na presidência
e que se diz a todos pulmões que
é negacionista
e terraplanista
e anti vacina
e com o sucesso momentâneo
ajuda na derrocada do país

BH, 0210102022: Publicado: BH, 02301202022.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

o sonho do poeta é a obra-prima que mudará a vida

o sonho do poeta é a obra-prima que mudará a vida
ou é a obra de arte que mudará o comportamento
e não é mudar a vida para ganhar dinheiro
e nem é mudar o comportamento para se pensar superior
e sim a passar a experimentar pessoalmente
o que escreve ao agir com os atos
e com os gestos
e os comportamentos que desenha
e que almeja atingir
e de que vale a pena o poeta escrever que
ama
e odiar?
0e de que vale a pena o poeta escrever paz
e fazer a sua guerra particular?
e poeta precisa ser despreendido
e livre das materialidades
e liberto do desprezo
ao não desprezar os semelhantes
e ser um assemelhado
e não ser dessemelhante
e mostrar nos atos a própria grandeza
e banir a pequenez
e a mesquinhez que causam vergonha a
quem escreve poemas
ou poesias
e implora por novas filosofias
e sem contra argumentos o indiferente é o
único que merece desprezo
ou os mortos que enterrem seus próprios mortos
ou quem guiará a humanidade com as novas
sociedades conservadoras que surgem com o
velho ódio
ou no antigo racismo
ou no xfobismo
ou no misoginismo
e pensar num poeta assim misógino
ou racista
e que tipo de poesia poderá fazer?
e que tipo de poema poderá escrever?
o poeta não pode ser um ser dentro do seu ser
e ser um ser às vistas doutros seres
ou então deixa de ser poeta
e quando o chamarem de poeta chora
como se chora um morto

BH, 0290502019; Publicado: BH, 02201202022.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

nunca mais vou sair por aí a procurar

nunca mais vou sair por aí a procurar
um ponto de apoio
uma alavanca
uma pedra fundamental
ou uma rocha filosofal
ou uma pedreira descomunal
ou um rochedo marco inaugural
e sem fé transporei montanhas
e a pé vencerei cordilheiras
e de vertentes em vertentes
e de veredas em veredas
e a costear as falésias
e a ombrear os desfiladeiros
e os paredões consagrados serei a ponte no
abismo universal
e a gota d'água que transbordará os oceanos
e a molécula de ar que sufocará as atmósferas
e o grão de areia que desmoronará as dunas
e o raio de luz que esgotará os sois
e serei o excesso dos excessos
e fartarei os famintos famélicos fominhas
e darei de beber aos sedentos
e pararei num despenhadeiro
e nunca mais procurarei agulha no palheiro
e nunca mais o eco ecoará a maldição de nunca mais
e à beira dos milenares canions virarei
a estátua de sal por não ter olhado para atrás
e em letras de fogo-fátuo escreverei no
pedestal do monumento o fatídico epitáfio
do corvo nunca mais

BH, 01501202022; Publicado: BH, 02001202022.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

e o poeta ama ou não é poeta

e o poeta ama ou não é poeta
e o poeta contesta
e como amar em sociedade tão desumana?
e como ser humano em humanidade tão
composta de seres desprovidos de amor?
e teimam com o poeta
e então o poeta não é poeta
mas é só o poeta que tem que amar?
e é só o poeta que tem que dar exemplo?
e combater o mau?
e não fazer o mal?
e o poeta pensa que todo mundo deveria agir
igual a um poeta
e com filosofia
e com psiquiatria
e com psicologia
e aí sim a natureza viraria um jardim
e ninguém a atacaria
e nem a queimaria ou destruiria a fauna
ou destruiria a flora ou devastaria
o meio ambiente
e o ecossistema
e a biodiversidade
e a sociedade seria um exemplo para a humanidade
e todo ser que habita a terra seria um poeta
e faria poesias
e poemas
e sonetos
e sairiam obras-primas dos guetos
e obras de arte das janelas
e portas das favelas
e este é um sonho dum poeta a luta pelo
direito humano de nos amar uns aos outros
sem precisar nos armar
e não o luto causado pelo ódio
e do preconceito
e o rancor pela cor
e a dor do desamor
e a raiva que a igualdade caus
e a cólera da liberdade
e o pavor dos direitos
e o temor das revoluções
e o poeta ama
e nunca deixa de amar mesmo quando ama
e não sabe como demonstrar

BH, 0130602022; Publicado: BH, 01901202022.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

pai é muito chato

pai é muito chato
vive a tentar a me tirar do quarto
a me levantar do chão
veio aqui à porta
bateu palmas de leve
perguntou não quer ir para lá não?
nem respodi só espalmei a mão
para um tapinha
continuei sentado no chão
pai foi à janela
do quarto da irmã mais velha
olhou a rua
olhou a matinha que tem
em frente ao barraco que
a gente mora aqui na boca da favela
e a matinha é até muito legal
tem muitas árvores preservadas
moram muitos miquinhos chamados saguis
antigamente apelidados de soinhos
pai vive a me assediar
para que visite esses lugares
não quero nem saber
penso que hoje esteja de bom humor
pois não briguei
nem agredi pai
aproveito o silêncio
fico quieto
pai voltou da janela
se sentou à mesa
antes colocou
dois gomos de linguiça no feijão
mais um pouco d'água que
o almoço se completará com arroz
farofa de ovos
pai fala que por aí
tem gente a comer ossos
pés de galinha
cabeças de peixe
a disputar comida no lixo
a pedir coisas nos semáforos
aí até me sinto um ser no luxo
apesar dum cara que
pai chama de inominável
ter cortado um benefício meu

BH, 040502022; Publicado: BH, 0701202022.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

nem sei o que é que está escrito aqui

nem sei o que é que está escrito aqui
mas sei o que é que está escrito nas estrelas
e nas estrias das entranhas dos universos
e nem sei o que dizer
ou o que falar
mas sei o que dizem
e o que falam os organismos
e os órgãos dos infinitos
e ouço os gritos dos mundos que são
engolidos pelos buracos negros
e assunto o chiar do sol ao se espreguiçar
para nascer
e bocejo à boca da noite igual a minha filha
a bocejar para dormir
e nem sei o que escuto
e nem sei o que ouço
ou ausculto dos zumbidos
e dos zunidos normais mas vibro em todas
as vibrações celestiais
e os sussurros das fontes nos escuros
e os murmúrios dos riachos
e dos regatos a espantar os augúrios
e sorrio para os rios como se fosse uma fonte
defronte dum monte
e não sei se são fiji é que sou sarará ararat
e não sei se são sião
é que sou ancião cafuzo cabloco confuso
confúcio
e no cio criolo mulato moreno pardo preto
e nem sei mais nada que sou mas sou tudo
que sou
e até o nada sou
e nado no barro branco
e na argila
e na tabatinga
e tenho da caatinga a catinga natural que
exala o vivo
e me disfarço com a fragrância da flor do
meu cadáver a se decompor
e num canto espanto as moscas
e deixo as abelhas na minha pele a captar o
pólen
e a sugar o néctar
e o leite e o que
mais querem do meu teor

BH, 0130602022; Publicado: BH, 0601202022.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

as peles que me cobrem não são só sete peles

as peles que me cobrem não são só sete peles
e são talvez até mais do que setenta vezes sete
e são couros dos meus tios negros
e epidermes das minhas tias negras
e pergaminhos escuros
e queimados de sois africanos dos meus avôs pretos
e das minhas avós pretas
que se transformaram em
papiros de manuscritos de sangramentos
escorridos de pelourinhos
e ali a história é contada ao avesso
e a cantiga antiga cantada de traz para a frente
e a saga negada
e sempre seremos os vilões
e nunca os heróis
e sempre seremos os escravos
e escravizados
e a elite
a burguesia representantes dos colonizadores
nunca nos pedirão perdões
nunca nos darão nossas cartas de alforrias
e sofreremos escárnios
e sofreremos racismos
e sofreremos esculachos
e demais preconceitos
e sem os nossos direitos de sermos
pelo menos seres humanos
respeitados pela humanidade como
componentes exemplos da raça humana
sem despertar suspeitas
e lustrarei minhas peles ancestrais
e engraxarei  os pelos
e os cabelos
e as dermes
e as tais epidermes de tudo
dos meus antepassados
donde sou composto com organismo
intestinos
e entranhas
e tutanos
e medula
testosterona
e adrenalina
e libido
e óvulos
espermas
e sangue muito sangue arterial
para escrever as linhas trilhadas
e as correntes quebradas
os elos despedaçados
e os grilhões arregaçados
e os precipícios superados
e os temores liberados
e todas as nossas falas
e rezas
orações
e preces
serão em nome da liberdade
das nossas gerações em gerações descendentes livres como a brisa do vento nos chama
nos olha nos olhos de livres irmãos

BH, 030401002022; Publicado: BH, 0201202022.

e o outro nome do país hoje é tristeza

e o outro nome do país hoje é tristeza
e tristeza que parece não ter fim
e nem querer ir embora
nem por favor
mas o que é preciso é que
essa tristeza vá embora
o mais cedo possível
para que o brasil possa voltar a sorrir
e a nação virou um túmulo
eternamente em luto
e o povo não pode mais lutar pois
não consegue comprar o que comer
e o que beber
e o que vestir
e o homem brasileiro virou esmoler
pelos semáforos
e debaixo das marquises
e sob os viadutos
e crianças nos sinais a fazer sinais
com as mãos a pedir
cada vez mais
e a elite fecha os vidros dos carros
a burguesia blinda os automóveis
e a polícia protege a plutocracia
e o judiciário conivente com a cleptocracia
e o povo trabalhador brasileiro
sem emprego 
sem trabalho
e sem trabalhismo
e com desprezo ao trabalhista
e o que se encontra pelas ruas
são os intermitentes
e os falsos empreendedores
e os chamados escravos modernos que
servem sem direitos
e por baixa remuneração
e são os sem razão
e muitas vezes até sem noção
que ainda justificam o neoliberalismo
e o capitalismo
e falam que coisas de direito
de igualdade
e de fraternidade
e de liberdade
são coisas do comunismo
e do socialismo
que a bandeira nunca será vermelha
e que são cristãos armamentistas
e seguem um torturador genocida apologista
de todo tipo de violência contra tudo
e contra todos e que
ainda é negacionista
e escarnecedor
e néscio
um ser escroto nefasto e pernóstico

BH, 0140602022; Publicado: BH, 0201202022.

e o mundo despreza o imundo jair messias bolsonaro

e o mundo despreza o imundo jair messias bolsonaro
e o mundo civilizado ignora a pessoa nefasta
que fala que foi batizada no rio jordão
e o mundo desconfia que o tal foi batizado no rio estige
pelo caronte
e o seu cão de guarda cérbero
a filosofia chora
e a sociologia chora
e a história chora
e o assassino continua
com a sua gana destruidora
e a educação chora
e a cultura chora
e os que não gostam de nada disso
batem palmas para o dromedário
elogiam o mamute
e tecem loas ao mastodonte
e enaltecem o ogro
e aclamam o pitbull
e até as mulheres servem ao escroto
e o mundo das civilizações conhece a história
que será destruída
e sabe dos destinos daqueles que
compõem o séquito maldito
e os asseclas do cão que
se apoderou do seio de tão nobre
nação que hoje saúda celeiro de celerados
paiol de desmiolados
e ceara de insanos
ou armazém de bestas apocalípticas
e de mentes de mefistófeles
e de mentecaptos inaptos
energúmenos incorporados de evangélicos
outros religiosos medievais
e o mundo globalizado se afasta
do ostomizado jair messias bolsonaro
e seu governo lobotomizado
composto de corpos de invertebrados
e o país governado por um bando de malucos
desce ladeira abaixo locomotiva desgovernada
de loucos sem controle
e hospício a céu aberto
e só o alienista bruxo do cosme velho
para internar todos esses alienados

BH, 0270280402019; Publicado: BH, 0201202022.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

e nem sei escrever mais nada

e nem sei escrever mais nada
e era daquele que pensava que
sabia escrever alguma coisa
toda vez que pegava a esferográfica
só deixava registos rupestres sobre
as paredes cavernosas dos escombros
e os caracteres não eram gerados pelo fogo
e logo eram apagados pelo tempo
e espalhados pelo vento
feitos cinzas de restos mortais
de antepassados
e de ancestrais
esquecidos em portais
das encruzilhadas da história
e então via nas metáforas imperfeitas
dos descendentes que nada sabia
e pior do que um sócrates piorado
envenenava-me com a cicuta ardente
nos bares dos baixos das ruas de cantos
e ruas de fundos
e becos imundos com os
seres mais baixos do submundo subterrâneo
da sociedade apodrecida
e tinha um alento
e ouvia a voz dos pingos da chuva nas folhas
das plantas
e ouvia a voz da aragem
farfalhar a folhagem
e a sussurrar na ramagem
linguagens estranhas só entendidas
pelos poetas
e fazedores de poemas infinitos
e orações eternais
e poesias imortais
e tudo por mais sujo que seja
se cala diante duma chuva
numa inexplicável reverência
sem limites
e que é como se passasse diante
dum monte
e há de se elevar o semblante
além das paralelas numa visão de olhar pineal
numa ausculta de sabedoria
engendrada no coração
e na força cardíaca intrínseca
que move a razão

BH, 0160402019; Publicado: BH, 02901102022.

a obsessão é cega a faca é amolada

a obsessão é cega a faca é amolada
e é maior do que a fé que é menor do que
um grão de moscada
e corta mais do que o facão
e a obsessão sufoca o poeta
e afoga o bardo
e asfixia o aedo pois todos querem
satisfazer a obsessão
e a obsessão quando não é atendida
deprime com depressão deprimente
e derruba os assemelhados
mata os semelhantes primatas
e os dessemelhantes que
não entendem o desassossego
e a desrazão
e não atendem os subconscientes dos
cérberos que habitam os subterrâneos dos
cérebros
e os labirintos que ligavam os
continentes extintos
e a vida em exoplanetas
e os brilhos das estrelas que morreram em
agonia que quanto mais agonizavam mais
morriam de angústia pela luz perdida em vão
e que mesmo quando era captada pelo
buraco negro
e transformada em energia
e a energia era desperdiçada no espaço do
universo pois se essa energia fosse
transformada em poesia
o universo se expandiria cada vez mais
e a luz entra em obsessão
e a energia entra em obsessão
e o universo entra em obsessão
e o caos entra em obsessão
pelo fogo da euforia que consome um ser que
escreve poesia com os habitantes da fornalha
que ardia que nem chamuscados foram pelo
fogo aumentando sete vezes que os consumia

BH, 0270402019; Publicado: BH, 02901102022.

o que que posso fazer se não sei o que fazer

o que que posso fazer se não sei o que fazer
e quem sabe o que fazer não faz
e nem ensina a quem não sabe
e quer aprender
e alguém urgentemente que não sei quem
precisa fazer alguma coisa para
resgatar a dignidade da nação ferida prostrada
humilhada da forma  mais indigna que já se viu
e olho as forças armadas
e sinto vergonha
e medo
e nojo e rancor
e olho as polícias federal
militar
e civil
e guarda municipal
e tenho horror
e terror
e são assassinos covardes em série que
não sei como homens que
se dizem com honras servem em tais
corporações que
só perseguem assassinam pretos pobres
ou moradores de áreas desprovidas
das condições do estado
e humilham cidadãos
e cidadãs
e jovens sem esperança duma vida melhor
e o povo trabalhador brasileiro
e a nação indignada brasileira precisam
dar as mãos para vencermos os desafios
do futuro
ou o país não será de todos
ou o brasil só será da elite despudorada
ou da burguesia descarada
e a raia miúda precisa ser incluída na
sociedade
e a raia miúda precisa de moradia
e de saúde
e de alimentação
e a ralé de  educação
e a raia miúda
e a ralé precisam de cidadania
e de soberania
e de dignidade
queiramos
ou não a raia miúda
e a ralé também fazemos
parte do rolê da nação
e não podemos abrir mãos
do que é cláusula pétrea
da nossa sagrada constituição

BH, 0140602022; Publicado: BH, 02901102022.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

ainda bem que não tem o que fazer

ainda bem que não tem o que fazer
porque se tivesse alguma coisa para fazer
o que que iria fazer?
e nunca soube fazer nada
nem o que os bichos fazem
cantar nadar trabalhar lutar brigar correr esconder viver
e tudo que fazia o povo ria
e debochava
e cismava
e estorvava
e ficava com raiva
nem jogar pedra iguais aos moleques de rua
sabia jogar
e nem bola de capotão
ou bola de meia
ou bolinha de gude
ou estilingue para matar passarinhos
ou armadilhas
e arapucas
alçapões
e tiravam-lhe o calção de pano de chão
no meio da rua
e escondiam-lhe os chinelos
e os cadernos
e davam-lhe cascudos por tudo
e morria afogado no rio de esgoto raso
e tinha medo do escuro no claro
e não passava rente ao muro do cemitério
e passava cosido à parede das casas das putas
da zona para espiar pelas janelas indiscreto
e corria de árvore assombrada
que era gameleira onde apareciam
assombrações no que era o maior pecado
da vida dum menino ter medo de árvores
na pura
e santa ignorância
e estupidez
e matava passarinhos
e espetava bundas de tanajuras
e com a certeza de que não ia para o céu
com tanta ruindade que cometia
e agora na  rabugice da velhice
vive jogado pelos cantos
do cárcere privado
a pedir a deus perdões pelos pecados

BH, 0270202022; Publicado: BH, 02801102022.

sábado, 26 de novembro de 2022

nunca ouviu um conselho do pai

nunca ouviu um conselho do pai
e nem nunca ouviu conselho da mãe
e o pai quis ensinar inglês
e colocação num serviço público federal
ou estadual
ou municipal
e a mãe quis ensinamentos de religião
e não deu atenção
e torceu o nariz
e de frustração atrás de frustração
e derrotas
e mais derrotas
não tinha com que levar comida à boca dos filhos
e a mulher seguiu à igreja
e pegou com a fé a acreditar que
com os milagres do céu
a vida poderia mudar
e a vida não mudou
e nada mudou
e todo dinheiro gastou
e bebeu
e cantou
e bebeu mais
e cantou mais
e ficou para atrás
um peso morto
ou um empecilho
ou um problema atrás doutro
e não arranjava soluções
e não resolvia nada
e não apresentava resoluções
e não tinha sonhos
e nem utopias
e vivia na ilusão a iludir
os assemelhados
e os semelhantes
e opaco
e obtuso
e obscuro não entendia
ou interpretava o que lia
e mal enxergava um palmo à frente do nariz
e tropeçava nas próprias pernas bambas
e arriscava o próprio corpo molenga
e indolente era um estorvo
e enchia o saco
e puxava o saco
e ninguém aguentava mais
tanta babação de ovo

BH, 060202022; Publicado: BH, 02601102022.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

o nome do pobre é problema

o nome do pobre é problema
e o nome do rico é felicidade
e o outro nome do pobre é fome
e o outro nome do rico é mesa farta
e o deus do pobre é o deus dará
e o deus do rico é o deus mercado
e a polícia do pobre é o teje preso
e a polícia do rico é em que posso ajudar ao
distinto cidadão?
e a sina do pobre é pagar imposto
e a sina rico é a sonegação
e os outros nomes do pobre são beltrano
ou fulano
ou sicrano
e os outros nomes do rico são doutor senhor
cavalheiro magnata
e por aí vai até nunca mais
e o pobre só tem deveres
e o rico só tem direitos
e garantias
e o pobre até faz o bem sem olhar a quem
e o rico toma até de quem não tem bem
e o pobre só existe para existir o rico
e o rico existe para fazer o pobre não existir
e o pobre não tem nem sombra
e água fresca
e o rico tem maracutaia
e mordomia
e a burguesia
e a elite
e a plutocracia
e o pobre é bastardo
e o rico abastado
e dai ao pobre o que é do pobre o nada
e dai ao rico o que é do rico o tudo até o pobre
e o pobre sobrevive de esmolas
e de restos
e o rico vive de herança
e festança
e gastança
e a vida do pobre é tempestade
e vendaval
e a vida do rico é bonança
e carnaval
e o pobre rói osso com a corda no pescoço
e o pobre é só trabalho sem diversão
e o rico ainda faz do pobre um bobão

BH, 060202022; Publicado: BH, 02501102022.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

e vem de lá uma agulha de pedra

e vem de lá uma agulha de pedra
que chegou num raio duma tempestade
de trovão
de tarde
e a meninada ficou a imaginar
e a decifrar
e a conjecturar que
pedra era um raio
e que o raio era uma pedra
e cada um com uma pedrada
na cabeça rachada
que pedra
que nada
que raio
que nada
que meninada
que nada
que raio
parta num parto
a meninada encantada na enxurrada
que abria valas nas via
nos morros
e nas encostas
e as ruas enlameadas
e os cachorros molhados
eletrizados arrepiados
a sacudir os pingos nos is
e as galinhas nos poleiros
e os galos nos terreiros
e cada quintal um viveiro universal
com fauna
e flora
e mundo real a ser explorado
por expedições de fenícios a descobrir
riquezas egípcias que os tios traziam
de viagens ao nilo
e ao mediterrâneo
e às tumbas dos faraós
e às pirâmides
e suas assombrações embalsamadas e caravanas de camelos
e dromedários com os tesouros que
ficaram guardados nos templos dos tempos
das cristaleiras
e dos armários

BH, 0100802022; Publicado: BH, 02401102022.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

ai usas muitas letras muitas palavras aí

ai usas muitas letras muitas palavras aí
aí pareces até um mocorongo genocida que
disse uma vez que não gostava
e nem lia livros pois livros eram muitos cheios
de muitas letras
e de muitas palavras em páginas repletas
de coisas escritas aí
ai poderias escrever menos frases aí
ai que fazes da vida?
não custa nada perder um tempinho
bem devagar a ler umas laudas
escritas por um velho
que não tem mais nada a fazer na vida
a não ser cronicar
e prosear aí
ai se diminuires os períodos
e as sentenças
e os versos
e provérbios ninguém ficaria
tão cansado assim para ler uma poesia aí
ai teus pensamentos me doem
e teus argumentos não têm fundamentos
e teus fragmentos perderam filamentos
e te tornam um balde vazio
ou uma moringa à míngua
ou uma jarra que mesmo vistosa uma negra
elegante não a equilibra na rudia
em cima da cabeça esbelta de rainha
de países mais nobres d'africa aí
ai mal consigo interpretar um haicai
ou um versículo bíblico 
ai imagina então uma parábola parabólica
cheia de metáforas
e de linguagens
e de discursos figurativos
iguais aos do maior poeta conhecido
jesus cristo aí ai

BH, 0170802022; Publicado: BH, 02301102022.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

o coração é capenga só bate dum lado

o coração é capenga só bate dum lado
e justamente para o lado de dentro que
é o lado aleijado
e o coração é perneta só pula com
uma perna só a parecer um saci pererê
e não é coração que suporta rojão
e não aguenta um tranco bem dado
e não sustenta um trampo para a sobrevivência
é um coração vagabundo de cachorro vira-latas
de cão sem pedigree
e de gato que cruza estradas bêbado
de madrugada
e é um coração vilão que qualquer puta
o leva pela mão
e o arrasta nas sarjetas
e nas valetas
nas valas a inferno aberto
e nos guetos
e nos esgotos esgotados
de tão coração escroto
e se perde nas periferias
e nas freguesias dos aglomerados das favelas
e foge das polícias nas adjacências
para não ser mais um caso esquecido pelas
estatísticas
e para não ser mais uma vez humilhado
ou enfim ser assassinado
e é um coração de preto fujão desesperado
por que quer ser amado mas como
e quer ser respeitado mas
e o racismo estruturado
e quer ser preservado mas
não tem alicerce
não tem constituição na construção
e nasceu na destruição
e nasceu na ruína
e é um coração de doido doído dolorido
sem analgésico
não tem vacina
e não tem remédio
e só tem medo
e não tem história
só uma herança maldita com engulhos
e sacos sem blandicias
e sem adornos
e com confetes
e serpentinas
nos bailes dos inferninhos
e saco de pancadas
nas mãos dos leões de chácaras
e volta ao jazigo moído
um olho roxo posto para fora
um nariz chato bem mais achatado
e um beiço grosso bem mais engrossado
e chora num canto um lixo amontoado

BH, 050502022; Publicado: BH, 02201102022.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

é uma guerra entre pai e eu

é uma guerra entre pai e eu
e é uma guerra surda
e é uma guerra cega
é uma guerra muda
e em suma
é uma guerra fria
e só não esquenta devido a intervenção de mãe eu e pai não nascemos um para o outro
e sempre quando posso
quero pegá-lo à unha
e quando não fica esperto
acaba por levar umas
e outras
e fico mais chato quando aperta a depressão
e fujo para o meu quarto escuro
e isolo-me
e não quero saber de nada
e quem chega perto
acaba por levar um safanão do nada
sem dó
e mãe é que é o elo
e é como se fosse uma escrava minha
e que me dá banhos
limpa os meus pés
e corta minhas unhas resignada
como a mulher que lavou os pés de alguém
com as lágrimas
e enxugou com os cabelos
e achei até bonita essa colocação de submissão
e uma coisa que não sou
é submisso
e só se for com muita força
ou à base de sossega leão
e fora disso o meu mundo não cai
e sei que ninguém quer saber de mim
e das minhas coisas mas
é por culpa de mim mesmo
e é que não aceito presenças
e nem carinhos
e nem amor
e ninguém tem consciência da minha existência
e não conto nas estatísticas
e também mando todo mundo se foder
por qualquer motivo
ou sem motivo não importam a ocasião
e a motivação
e às vezes até conforto-me quando capto por
alto que um tal de bolsonaro
é presidente do país
e pelo que ouço falar do cara
parece que é pior do que sou
e isso é um alívio para mim

BH, 0220502019; Publicado: BH, 01801102022.

e agora não vejo mais o sol

e agora não vejo mais o sol
e agora não vejo mais a lua
e nem as estrelas
e até júpiter
e vênus
já sumiram das minhas madrugadas
quase manhãs de manhãzinhas
e agora não posso mais ficar bêbado
como gostaria para parir poesias
todos os santos dias
e os profanos também
e agora são só dilemas
e não posso mais dar vidas a poemas
é que o hormônio testosterona
não destila mais nos desfiles
dos desfiladeiros virginais
é que a adrenalina
não entra mais em erupção
a fazer pulsar o coração
e a libido esfriou
e apagou o fogo do tesão
e a brasa do tição que virou carvão
e o carvão que era brasa virou cinza
e agora jeremias é só lamentações
sem salmos de davi
sem profecias de absalão
e penso que também
sem a longevidade de matusalém
e nem oração para dizer amém
e emparedado a degredado
ando descuidado desgarrado
e fico mais calado mesmo sem estar
sob baioneta calada de baixo calão
ou de lâmina de facão mas
sem ter nada para falar ao sol
e sem falar à lua
ou a vênus
ou a júpiter
só este boneco de defunto mudo
que perdeu a ternura
à boca da sepultura voraz
a querer devorar carne
em avançado estado de putrefação

BH, 030502022; Publicado: BH, 01801102022.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

de férias da vida porém faz frio às voltas da mesa

de férias da vida porém faz frio às voltas da mesa
da cozinha
e luto contra os jogos mentais
e as confabulações espirituais
e busco confusões aleatórias
e distantes da consciência
e lá fora de mim o mundo vive
e a chuva parou
e só as vibrações naturais teimam em lembrar
que estou também vivo apesar de velho
alquebrado
e faz tempo que não pego num livro
e pergunto para quê?
tanta gente que pega em livros
e levou um fascista ao poder
e fico triste com esta alusão
um país que era de ordem
e progresso
e referência de nação
dum dia para o outro
virou um país de desordem
e regresso
e regredimos
ao fascismo literal
e ao racismo estrutural
e à homofobia genuína
e elogios aos torturadores
e louvações aos ditadores e louvamos aos
misóginos
e agressores de mulheres
crianças
e compactuamos com os estupros
a pedofilia
e a prostituição infantil
e sem deixar de frequentar as igrejas católicas
evangélicas em convivência
e conivência com esse lado sujo da humanidade
e agora será um trabalho árduo
e hercúleo para retirar os loucos
e suas loucuras do comando da nação
e onde estávamos com a cabeça?
quando o povo não pensa o país padece
pagará caro por este erro histórico
e o de ficar do lado errado da história
e já começaram a aparecer as falcatruas
e as mentiras do clã oficial com suas corrupções de corrompidos
e de corruptos corruptores
os tráficos de influências
e os nepotismos cruzados
e os ditos apoiadores de tais farsas
se veem no mato sem cachorro
e não têm onde enfiar a cara
e morrem de vergonha
de desgostos afogados nos esgotos por
tantos descalabros com o povo
principalmente o povo trabalhador brasileiro
que não merecia tantas tiranias vilanias

BH, 0160502019; Publicado: BH, 01701102022.