terça-feira, 29 de novembro de 2022

e nem sei escrever mais nada

e nem sei escrever mais nada
e era daquele que pensava que
sabia escrever alguma coisa
toda vez que pegava a esferográfica
só deixava registos rupestres sobre
as paredes cavernosas dos escombros
e os caracteres não eram gerados pelo fogo
e logo eram apagados pelo tempo
e espalhados pelo vento
feitos cinzas de restos mortais
de antepassados
e de ancestrais
esquecidos em portais
das encruzilhadas da história
e então via nas metáforas imperfeitas
dos descendentes que nada sabia
e pior do que um sócrates piorado
envenenava-me com a cicuta ardente
nos bares dos baixos das ruas de cantos
e ruas de fundos
e becos imundos com os
seres mais baixos do submundo subterrâneo
da sociedade apodrecida
e tinha um alento
e ouvia a voz dos pingos da chuva nas folhas
das plantas
e ouvia a voz da aragem
farfalhar a folhagem
e a sussurrar na ramagem
linguagens estranhas só entendidas
pelos poetas
e fazedores de poemas infinitos
e orações eternais
e poesias imortais
e tudo por mais sujo que seja
se cala diante duma chuva
numa inexplicável reverência
sem limites
e que é como se passasse diante
dum monte
e há de se elevar o semblante
além das paralelas numa visão de olhar pineal
numa ausculta de sabedoria
engendrada no coração
e na força cardíaca intrínseca
que move a razão

BH, 0160402019; Publicado: BH, 02901102022.

a obsessão é cega a faca é amolada

a obsessão é cega a faca é amolada
e é maior do que a fé que é menor do que
um grão de moscada
e corta mais do que o facão
e a obsessão sufoca o poeta
e afoga o bardo
e asfixia o aedo pois todos querem
satisfazer a obsessão
e a obsessão quando não é atendida
deprime com depressão deprimente
e derruba os assemelhados
mata os semelhantes primatas
e os dessemelhantes que
não entendem o desassossego
e a desrazão
e não atendem os subconscientes dos
cérberos que habitam os subterrâneos dos
cérebros
e os labirintos que ligavam os
continentes extintos
e a vida em exoplanetas
e os brilhos das estrelas que morreram em
agonia que quanto mais agonizavam mais
morriam de angústia pela luz perdida em vão
e que mesmo quando era captada pelo
buraco negro
e transformada em energia
e a energia era desperdiçada no espaço do
universo pois se essa energia fosse
transformada em poesia
o universo se expandiria cada vez mais
e a luz entra em obsessão
e a energia entra em obsessão
e o universo entra em obsessão
e o caos entra em obsessão
pelo fogo da euforia que consome um ser que
escreve poesia com os habitantes da fornalha
que ardia que nem chamuscados foram pelo
fogo aumentando sete vezes que os consumia

BH, 0270402019; Publicado: BH, 02901102022.

o que que posso fazer se não sei o que fazer

o que que posso fazer se não sei o que fazer
e quem sabe o que fazer não faz
e nem ensina a quem não sabe
e quer aprender
e alguém urgentemente que não sei quem
precisa fazer alguma coisa para
resgatar a dignidade da nação ferida prostrada
humilhada da forma  mais indigna que já se viu
e olho as forças armadas
e sinto vergonha
e medo
e nojo e rancor
e olho as polícias federal
militar
e civil
e guarda municipal
e tenho horror
e terror
e são assassinos covardes em série que
não sei como homens que
se dizem com honras servem em tais
corporações que
só perseguem assassinam pretos pobres
ou moradores de áreas desprovidas
das condições do estado
e humilham cidadãos
e cidadãs
e jovens sem esperança duma vida melhor
e o povo trabalhador brasileiro
e a nação indignada brasileira precisam
dar as mãos para vencermos os desafios
do futuro
ou o país não será de todos
ou o brasil só será da elite despudorada
ou da burguesia descarada
e a raia miúda precisa ser incluída na
sociedade
e a raia miúda precisa de moradia
e de saúde
e de alimentação
e a ralé de  educação
e a raia miúda
e a ralé precisam de cidadania
e de soberania
e de dignidade
queiramos
ou não a raia miúda
e a ralé também fazemos
parte do rolê da nação
e não podemos abrir mãos
do que é cláusula pétrea
da nossa sagrada constituição

BH, 0140602022; Publicado: BH, 02901102022.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

ainda bem que não tem o que fazer

ainda bem que não tem o que fazer
porque se tivesse alguma coisa para fazer
o que que iria fazer?
e nunca soube fazer nada
nem o que os bichos fazem
cantar nadar trabalhar lutar brigar correr esconder viver
e tudo que fazia o povo ria
e debochava
e cismava
e estorvava
e ficava com raiva
nem jogar pedra iguais aos moleques de rua
sabia jogar
e nem bola de capotão
ou bola de meia
ou bolinha de gude
ou estilingue para matar passarinhos
ou armadilhas
e arapucas
alçapões
e tiravam-lhe o calção de pano de chão
no meio da rua
e escondiam-lhe os chinelos
e os cadernos
e davam-lhe cascudos por tudo
e morria afogado no rio de esgoto raso
e tinha medo do escuro no claro
e não passava rente ao muro do cemitério
e passava cosido à parede das casas das putas
da zona para espiar pelas janelas indiscreto
e corria de árvore assombrada
que era gameleira onde apareciam
assombrações no que era o maior pecado
da vida dum menino ter medo de árvores
na pura
e santa ignorância
e estupidez
e matava passarinhos
e espetava bundas de tanajuras
e com a certeza de que não ia para o céu
com tanta ruindade que cometia
e agora na  rabugice da velhice
vive jogado pelos cantos
do cárcere privado
a pedir a deus perdões pelos pecados

BH, 0270202022; Publicado: BH, 02801102022.

sábado, 26 de novembro de 2022

nunca ouviu um conselho do pai

nunca ouviu um conselho do pai
e nem nunca ouviu conselho da mãe
e o pai quis ensinar inglês
e colocação num serviço público federal
ou estadual
ou municipal
e a mãe quis ensinamentos de religião
e não deu atenção
e torceu o nariz
e de frustração atrás de frustração
e derrotas
e mais derrotas
não tinha com que levar comida à boca dos filhos
e a mulher seguiu à igreja
e pegou com a fé a acreditar que
com os milagres do céu
a vida poderia mudar
e a vida não mudou
e nada mudou
e todo dinheiro gastou
e bebeu
e cantou
e bebeu mais
e cantou mais
e ficou para atrás
um peso morto
ou um empecilho
ou um problema atrás doutro
e não arranjava soluções
e não resolvia nada
e não apresentava resoluções
e não tinha sonhos
e nem utopias
e vivia na ilusão a iludir
os assemelhados
e os semelhantes
e opaco
e obtuso
e obscuro não entendia
ou interpretava o que lia
e mal enxergava um palmo à frente do nariz
e tropeçava nas próprias pernas bambas
e arriscava o próprio corpo molenga
e indolente era um estorvo
e enchia o saco
e puxava o saco
e ninguém aguentava mais
tanta babação de ovo

BH, 060202022; Publicado: BH, 02601102022.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

o nome do pobre é problema

o nome do pobre é problema
e o nome do rico é felicidade
e o outro nome do pobre é fome
e o outro nome do rico é mesa farta
e o deus do pobre é o deus dará
e o deus do rico é o deus mercado
e a polícia do pobre é o teje preso
e a polícia do rico é em que posso ajudar ao
distinto cidadão?
e a sina do pobre é pagar imposto
e a sina rico é a sonegação
e os outros nomes do pobre são beltrano
ou fulano
ou sicrano
e os outros nomes do rico são doutor senhor
cavalheiro magnata
e por aí vai até nunca mais
e o pobre só tem deveres
e o rico só tem direitos
e garantias
e o pobre até faz o bem sem olhar a quem
e o rico toma até de quem não tem bem
e o pobre só existe para existir o rico
e o rico existe para fazer o pobre não existir
e o pobre não tem nem sombra
e água fresca
e o rico tem maracutaia
e mordomia
e a burguesia
e a elite
e a plutocracia
e o pobre é bastardo
e o rico abastado
e dai ao pobre o que é do pobre o nada
e dai ao rico o que é do rico o tudo até o pobre
e o pobre sobrevive de esmolas
e de restos
e o rico vive de herança
e festança
e gastança
e a vida do pobre é tempestade
e vendaval
e a vida do rico é bonança
e carnaval
e o pobre rói osso com a corda no pescoço
e o pobre é só trabalho sem diversão
e o rico ainda faz do pobre um bobão

BH, 060202022; Publicado: BH, 02501102022.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

e vem de lá uma agulha de pedra

e vem de lá uma agulha de pedra
que chegou num raio duma tempestade
de trovão
de tarde
e a meninada ficou a imaginar
e a decifrar
e a conjecturar que
pedra era um raio
e que o raio era uma pedra
e cada um com uma pedrada
na cabeça rachada
que pedra
que nada
que raio
que nada
que meninada
que nada
que raio
parta num parto
a meninada encantada na enxurrada
que abria valas nas via
nos morros
e nas encostas
e as ruas enlameadas
e os cachorros molhados
eletrizados arrepiados
a sacudir os pingos nos is
e as galinhas nos poleiros
e os galos nos terreiros
e cada quintal um viveiro universal
com fauna
e flora
e mundo real a ser explorado
por expedições de fenícios a descobrir
riquezas egípcias que os tios traziam
de viagens ao nilo
e ao mediterrâneo
e às tumbas dos faraós
e às pirâmides
e suas assombrações embalsamadas e caravanas de camelos
e dromedários com os tesouros que
ficaram guardados nos templos dos tempos
das cristaleiras
e dos armários

BH, 0100802022; Publicado: BH, 02401102022.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

ai usas muitas letras muitas palavras aí

ai usas muitas letras muitas palavras aí
aí pareces até um mocorongo genocida que
disse uma vez que não gostava
e nem lia livros pois livros eram muitos cheios
de muitas letras
e de muitas palavras em páginas repletas
de coisas escritas aí
ai poderias escrever menos frases aí
ai que fazes da vida?
não custa nada perder um tempinho
bem devagar a ler umas laudas
escritas por um velho
que não tem mais nada a fazer na vida
a não ser cronicar
e prosear aí
ai se diminuires os períodos
e as sentenças
e os versos
e provérbios ninguém ficaria
tão cansado assim para ler uma poesia aí
ai teus pensamentos me doem
e teus argumentos não têm fundamentos
e teus fragmentos perderam filamentos
e te tornam um balde vazio
ou uma moringa à míngua
ou uma jarra que mesmo vistosa uma negra
elegante não a equilibra na rudia
em cima da cabeça esbelta de rainha
de países mais nobres d'africa aí
ai mal consigo interpretar um haicai
ou um versículo bíblico 
ai imagina então uma parábola parabólica
cheia de metáforas
e de linguagens
e de discursos figurativos
iguais aos do maior poeta conhecido
jesus cristo aí ai

BH, 0170802022; Publicado: BH, 02301102022.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

o coração é capenga só bate dum lado

o coração é capenga só bate dum lado
e justamente para o lado de dentro que
é o lado aleijado
e o coração é perneta só pula com
uma perna só a parecer um saci pererê
e não é coração que suporta rojão
e não aguenta um tranco bem dado
e não sustenta um trampo para a sobrevivência
é um coração vagabundo de cachorro vira-latas
de cão sem pedigree
e de gato que cruza estradas bêbado
de madrugada
e é um coração vilão que qualquer puta
o leva pela mão
e o arrasta nas sarjetas
e nas valetas
nas valas a inferno aberto
e nos guetos
e nos esgotos esgotados
de tão coração escroto
e se perde nas periferias
e nas freguesias dos aglomerados das favelas
e foge das polícias nas adjacências
para não ser mais um caso esquecido pelas
estatísticas
e para não ser mais uma vez humilhado
ou enfim ser assassinado
e é um coração de preto fujão desesperado
por que quer ser amado mas como
e quer ser respeitado mas
e o racismo estruturado
e quer ser preservado mas
não tem alicerce
não tem constituição na construção
e nasceu na destruição
e nasceu na ruína
e é um coração de doido doído dolorido
sem analgésico
não tem vacina
e não tem remédio
e só tem medo
e não tem história
só uma herança maldita com engulhos
e sacos sem blandicias
e sem adornos
e com confetes
e serpentinas
nos bailes dos inferninhos
e saco de pancadas
nas mãos dos leões de chácaras
e volta ao jazigo moído
um olho roxo posto para fora
um nariz chato bem mais achatado
e um beiço grosso bem mais engrossado
e chora num canto um lixo amontoado

BH, 050502022; Publicado: BH, 02201102022.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

é uma guerra entre pai e eu

é uma guerra entre pai e eu
e é uma guerra surda
e é uma guerra cega
é uma guerra muda
e em suma
é uma guerra fria
e só não esquenta devido a intervenção de mãe eu e pai não nascemos um para o outro
e sempre quando posso
quero pegá-lo à unha
e quando não fica esperto
acaba por levar umas
e outras
e fico mais chato quando aperta a depressão
e fujo para o meu quarto escuro
e isolo-me
e não quero saber de nada
e quem chega perto
acaba por levar um safanão do nada
sem dó
e mãe é que é o elo
e é como se fosse uma escrava minha
e que me dá banhos
limpa os meus pés
e corta minhas unhas resignada
como a mulher que lavou os pés de alguém
com as lágrimas
e enxugou com os cabelos
e achei até bonita essa colocação de submissão
e uma coisa que não sou
é submisso
e só se for com muita força
ou à base de sossega leão
e fora disso o meu mundo não cai
e sei que ninguém quer saber de mim
e das minhas coisas mas
é por culpa de mim mesmo
e é que não aceito presenças
e nem carinhos
e nem amor
e ninguém tem consciência da minha existência
e não conto nas estatísticas
e também mando todo mundo se foder
por qualquer motivo
ou sem motivo não importam a ocasião
e a motivação
e às vezes até conforto-me quando capto por
alto que um tal de bolsonaro
é presidente do país
e pelo que ouço falar do cara
parece que é pior do que sou
e isso é um alívio para mim

BH, 0220502019; Publicado: BH, 01801102022.

e agora não vejo mais o sol

e agora não vejo mais o sol
e agora não vejo mais a lua
e nem as estrelas
e até júpiter
e vênus
já sumiram das minhas madrugadas
quase manhãs de manhãzinhas
e agora não posso mais ficar bêbado
como gostaria para parir poesias
todos os santos dias
e os profanos também
e agora são só dilemas
e não posso mais dar vidas a poemas
é que o hormônio testosterona
não destila mais nos desfiles
dos desfiladeiros virginais
é que a adrenalina
não entra mais em erupção
a fazer pulsar o coração
e a libido esfriou
e apagou o fogo do tesão
e a brasa do tição que virou carvão
e o carvão que era brasa virou cinza
e agora jeremias é só lamentações
sem salmos de davi
sem profecias de absalão
e penso que também
sem a longevidade de matusalém
e nem oração para dizer amém
e emparedado a degredado
ando descuidado desgarrado
e fico mais calado mesmo sem estar
sob baioneta calada de baixo calão
ou de lâmina de facão mas
sem ter nada para falar ao sol
e sem falar à lua
ou a vênus
ou a júpiter
só este boneco de defunto mudo
que perdeu a ternura
à boca da sepultura voraz
a querer devorar carne
em avançado estado de putrefação

BH, 030502022; Publicado: BH, 01801102022.

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

de férias da vida porém faz frio às voltas da mesa

de férias da vida porém faz frio às voltas da mesa
da cozinha
e luto contra os jogos mentais
e as confabulações espirituais
e busco confusões aleatórias
e distantes da consciência
e lá fora de mim o mundo vive
e a chuva parou
e só as vibrações naturais teimam em lembrar
que estou também vivo apesar de velho
alquebrado
e faz tempo que não pego num livro
e pergunto para quê?
tanta gente que pega em livros
e levou um fascista ao poder
e fico triste com esta alusão
um país que era de ordem
e progresso
e referência de nação
dum dia para o outro
virou um país de desordem
e regresso
e regredimos
ao fascismo literal
e ao racismo estrutural
e à homofobia genuína
e elogios aos torturadores
e louvações aos ditadores e louvamos aos
misóginos
e agressores de mulheres
crianças
e compactuamos com os estupros
a pedofilia
e a prostituição infantil
e sem deixar de frequentar as igrejas católicas
evangélicas em convivência
e conivência com esse lado sujo da humanidade
e agora será um trabalho árduo
e hercúleo para retirar os loucos
e suas loucuras do comando da nação
e onde estávamos com a cabeça?
quando o povo não pensa o país padece
pagará caro por este erro histórico
e o de ficar do lado errado da história
e já começaram a aparecer as falcatruas
e as mentiras do clã oficial com suas corrupções de corrompidos
e de corruptos corruptores
os tráficos de influências
e os nepotismos cruzados
e os ditos apoiadores de tais farsas
se veem no mato sem cachorro
e não têm onde enfiar a cara
e morrem de vergonha
de desgostos afogados nos esgotos por
tantos descalabros com o povo
principalmente o povo trabalhador brasileiro
que não merecia tantas tiranias vilanias

BH, 0160502019; Publicado: BH, 01701102022.

quero viver pois viver para mim não é comer

quero viver pois viver para mim não é comer
e nem beber pois viver para mim é escrever
no sarcófago é escrever nas masmorras
e nos calabouços ou em qualquer outro lugar
no qual possa ser encontrado em liberdade
ou preso em correntezas marinhas
ou de cachoeiras de cataratas
ou em correntes de ar pois preciso viver
e viver para mim é vasculhar letras
e esmiuçar alfarrábios
e remexer em alfabetos extintos de línguas
exterminadas
batear palavras de idiomas sobrenaturais
estranhos
e quero o meu cadáver bem pesado
e com o bojo recheado
e com todos os órgãos sobrecarregados
e inchados que os tanatólogos deixarão
em seus devidos lugares pois não quero meu
cadáver esvaziado como uma carcaça de
sucata envelhecida
e saberão que ali jaz era um poeta intacto
e possuído por seus espíritos
e possesso por seus demônios que
tanto o atormentaram em vida
e nunca o deixaram ser feliz como uma criança
precisa da necessidade de ser feliz e as    infelicitamos
com certeza viverei nas minhas letras
e minhas palavras me comporão
e sobreviverei no meu resistente esqueleto
de marfim de elefante nobre
e a minha caveira de diamantes raros
gargalhará da eternidade na cara dos mortos
que ficarão aqui pois não descansarei em paz
no infinito se não tive paz no finito
e não quererei o descanso na posteridade
das minhas cinzas universais

BH, 0200502019; Publicado: BH, 01701102022.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

e chego cá comigo aos sessenta e sete anos

e chego cá comigo aos sessenta e sete anos
sozinho e só e a sós e solitário e me arrastei
réptil serpente sangue frio cobra víbora anfíbio
e dinossauro e tiranossauro-rex e mamute
e mastodonte e urso pardo e preto e polar
e panda e bicho preguiça de estimação desde 
doutras estações e não vejo opções a não ser
desprezar esses sessenta e sete setembros e
todos os outros passados e os que por acaso
vierem e manter o mesmo desprezo e
ignorância e isolamento e causar lamento nas
outras almas e imprecações nas outras bocas
e xingamentos nas outras línguas e no mais é
o que é demais para um velho rabujo e mal
cheiroso e cheio de inhaca e bodun e tiririca
e sebo nas juntas e remelas nos olhos e
melecas no nariz e babas na boca aberta de
lábios pendentes sem dentes e que não fecham
mais e nem falam gentilezas e vive sempre
sebenta sedenta com sede de aguardente e
cerveja e conhaque e outros-venenos mais
que não pode mais degustar-de tantas que são
as proibições dos médicos-e dos artesões da
saúde e outros paramentos-que querem
resguardar os restos de vida ou-de morte do
velho jumento rabugento

BH, 0100102022; Publicado: BH, 01601102022.

e no silêncio da sala do barracão

e no silêncio da sala do barracão
não oiço nem os arroubos do meu coração
e nem ausculto as equalizações do meu
organismo
e os passos ao vento
e as tosses
pigarros
e escarros
e os sons estrondosos das gargantas profundas
alheias dos semelhantes
e só de muito distante me vem do além para o
aquém algum augúrio dum alguém
ou dalgum sabe-se lá quem se fantasma
ou ectoplasma se assombração
ou energúmeno se mentecapto
ou espectro dalguma entidade se imagem de anjo
ou de demônio se simulacro não sei
e nem sei só movo a mão acorrentada
à está esferográfica
sangro de hemorragia em hemorragia
e não estanco o sangue que é desperdiçado
pois não aparece nenhum vampiro desesperado
para aproveitar o sangue coagulado
e se o terreno ainda fosse terreiro de terra
massapê
e de terra nobre
e fértil muitas pérolas raras germinariam à flor
do chão com tema
e com lema
e sem dilema
ou mistérios
e sinistros
ou enigmas que
decifrações causariam mortes
e infelicidades
e cada gota de sangue seria dum poeta morto
e cada flor vermelha seria duma poesia
e cada pétala imortalizada seria dum poema
e os fósseis resgatados das gavetas dos
tempos pré-históricos seriam relíquias nas
molduras nas paredes
e nas pilastras
e nos pilares do firmamento do universo
e cada um com um silêncio novo de
catacumba de faraó em sarcófago de ouro maciço

BH, 0130102022; Publicado: BH, 01601102022.

domingo, 13 de novembro de 2022

ainda devo uma rara obra-prima à humanidade

ainda devo uma rara obra-prima à humanidade
para também poder ser um ser humano
ainda devo uma obra de arte que supere
duma vez por todas as minhas malasartes
maus feitos
e mazelas da vida sem vela
e de bandeira em fralda
e ainda devo
e não nego
pago quando puder com uma bela arte para
superar todas as feiuras dos meus tempos
e mais nada posso dizer enquanto não pagar
o ar que respiro
e o azul do céu do firmamento que olho
e a sombra da árvore na qual me assento
e a água fresca do riacho no qual bebo
e do ribeirão no qual me banho
e do açude
e do regato
e da natureza que maltrato por ser reles
e não ser real
e por ser ralé anormal
e não ser normal mas a poesia cobra de mim
todo dia o vento que me embala
e me faz sentir vivo
e animado na brisa
e no sereno
e no orvalho
e na névoa
e na neblina
e o poema me acorda com o sol
e bate na minha cara
e tapa no meu rosto é que sou um nó cego
e só causo desgosto
e augúrio
e minhas premonições abstratas
e minhas incoerências
e um dia vou
e não volto mais
e não pago
e o universo levará a eternidade inteira
a falar mal de mim

BH, 070102022; Publicado: BH, 01301102022.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Pink Floyd - Animals (Full Album) 1977

e será que poeta morre mesmo

e será que poeta morre mesmo
ou será mais uma enganação do destino?
penso que o que morre não é o poeta
e sim o bojo que é o habitat do poeta
o pote que quebra
a talha que racha
a moringa que se parte
o vaso que vaza
e todo componente no qual o poeta está inserido morre
e o poeta fica fendido no universo com o
alicerce de versos
e o testamento com testemunho de versões
de poesias
e de poemas que dão gemas no estatuto dos
sonetos de sonhos
e ai aí vem um
e fala thiago de melo morreu
e é pouco
e vem outro
e fala thiago de melo morreu
ninguém diz que thiago de melo viveu
e muito
e vive muito mais ainda
ou estarei enganado?
ou será que poeta é menos
e menor ainda
e é engodo que qualquer coisa mata
e qualquer mortezinha chega
abala a fortaleza do poeta?
e o poeta é mero
e mínimo
ou é superior à morte morta?
o poeta é universal
michelangelo pintou o céu no teto da capela sistina
poeta pinta o firmamento do céu
e a cor preferida do poeta é o azul que é a cor
do infinito mas a palheta do poeta é o arco-íris
e o pincel é de pestanas
e de cílios e de sobrancelhas
e as telas do poeta são as pálpebras
o óleo é o sangue
e a sociedade é a única que mata o poeta
e a mídia também adora matar poetas em vida
as academias
e os liceus
e os ginásios
e os colégios
assassinam poetas cotidianamente mas o
poeta teima em vida a latejar nas reverberações
a cavalgar raios de sol a se fazer de girassol a
se transformar em coisas inanimadas
e sombrias
e o poeta é uma assombração
que despreza o sobrenatural

BH, 0140102022; Publicado: BH, 01101102022.

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

e não há uma ressonância ou uma reverberação

e não há uma ressonância ou uma reverberação
e não há nenhum frêmito trêmulo
ou uma flâmula que sejam
e não há um eco dum equalizador natural
ou duma resposta dum sobrenatural
e não há uma resposta nem do vento
e é só o vento a passar incólume entre as coisas
e é só a folhagem a vibrar na ramagem
e os galhos a balançar
e os caules fenderem fendidos
e a flor a murchar no fim da tarde
e cada um tem um arroubo outro um augúrio
e outrem um presságio ou um silêncio de morte
que acompanham os solitários na solidão
e não se ouve um arrastar de cadeira
ou um assoar de nariz entupido
ou uma tosse mesmo singela
ou um escarro ou um arroto cavernosos
e o domingo parece um morro morto
ao lado dum lago morto
e ao longe há uns latidos de cachorros
e é o que dizem meus ouvidos ensurdecidos
e nas minhas vistas meninas desvirginadas
as manchas nas paisagens
e cofio o queixo embranquecido
e a cabeça nua já empoeirada que enganava
empoderada leve igual a uma nuvem de pluma
e densa igual a uma treva abissínia
ou um toco de ébano abandonado numa
esquina cujos pensamentos abandonaram as moradias
e evaporaram nas névoas das flacidezes
e flatulências fumaças simulacros ondas
mentais que não encontram onde aportar
e voltam vazias aos portos dos cais tais naus
há séculos à deriva devido a calmaria
e não descobrem continentes
e nem fazem histórias das grandes navegações

BH, 0200502019; Publicado: BH, 01001102022.