quarta-feira, 22 de maio de 2024

Ozimandias, Percy Bysshe Shelley

 Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante:

Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,

Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante,

Afundando na areia, um rosto já quebrado,

De lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante:

Mostra esse aspecto que o escultor bem conhecia

Quantas paixões lá sobrevivem, nos fragmentos,

À mão que as imitava e ao peito que as nutria

No pedestal estas palavras notareis:

“Meu nome é Ozymandias, e sou Rei dos Reis:

Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!”

Nada subsiste ali. Em torno à derrocada

Da ruína colossal, a areia ilimitada

Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.

domingo, 19 de maio de 2024

Da justiça à democracia passando pelo sino, José Saramago.

Leia a íntegra do texto escrito por José Saramago que foi lido durante a cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. O FSM começou na quinta-feira passada e reuniu 60 mil pessoas.


"Da Justiça à democracia passando pelo sino


Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um fato notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século 16) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento.

Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar.

Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. 'O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino', foi a resposta do camponês. 'Mas então não morreu ninguém?', tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: 'Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta'.

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítios os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada.

O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à proteção da Justiça. Tudo sem resultado, a espoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exato tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça.

Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e por tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem exceção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando para cima da fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido...

Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...

Suponho ter sido esta a única vez, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias.

Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça.

Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exato e rigoroso sinônimo de ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável a felicidade do espírito como indispensável a vida e o alimento do corpo.

Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em ação, uma justiça em que se manifestasse, como um (ilegível) imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade.

Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia.

Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela Justiça companheira dos homens, daquela Justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo.

Houvesse essa Justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa Justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objetivamente tem sido.

Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e ação social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protetora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações.

Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aqueles trintas direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença.

E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a retidão de princípios e clareza de objetivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo atual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.

Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização econômica em curso. Não me alegra dizê- lo, mas não poderia calá- lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de la Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização econômica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingênuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos

. Nada mais certo, sob condição de que fosse efetivamente democrático, o sistema de governo e de gestão da sociedade a que atualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma minoria vier a impor sempre resultará um governo.

Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de ação democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e por outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder econômico, em particular a parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se tratasse de algo vivo e atuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica.

E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros 'comissários políticos' do poder econômico, com a objetiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder econômico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor."

quarta-feira, 8 de maio de 2024

se algum dia alguém me perguntar

se algum dia alguém me perguntar 

o que fazes da vida

responderei faço poesias 

faço poemas

mas isso 

não são poesias 

isso não são poemas

responderei 

graças a deus

domingo, 5 de maio de 2024

qual a função de quem amador

qual a função de quem amador

não tem profissão dom de nascença

boa aparência nem ótima impressão?

mau elemento mal alimentado

a andar em más companhias

em ruas de becos imundos

às voltas de poços sem

fundos não emergi de volta ao

mundo cada vez mais a descer 

para o fundo do subterrâneo

debaixo do manto da crosta da 

terra do lodo do pântano tal a um

morto ignoto ignaro que não tem

mais nada a fazer pois a vida não

interessa mais não tem mais 

prazer de viver nem quis por

onde sobreviver todos sabem 

das más condições pois não tem

condição nenhuma não tem amor

nem tem paz não é capaz nem

sagaz dizem os mais só um rapaz

que parece uma raparigas triste

que vive abstratamente sem conteúdo

concreto que não passa por algo 

verídico que é só falso como um fausto

que diz que ouviu mefistófeles na

voz dum cachorro de noite na 

cozinha ou na voz dum corvo na 

janela do quarto que estorvo que 

ninguém aredita de fato nem no fado

nem no nenúfar por algum agrado


BH, 090402024; Publicado: BH, 060502024.

João Nogueira;

quinta-feira, 2 de maio de 2024

lembrarei de ti não quero te esquecer

lembrarei de ti não quero te esquecer
precisas esquecer precisas viver não
quero não faço mais questão de viver
quero só te ver nas coisas nas quais 
não te via não quero ver outra assombração
quero ver só a tua aparição a tua 
visagem miragem não me importa o
que os outros vão dizer o que me 
importa é te ver aparecer no espelho 
que tinha medo que quebrasses na 
janela donde olhavas o nada o teu 
nome na placa do cemitério a campa
rasa sem o epitáfio tu amarrado nas
macas entubado a morte chegava
enquanto fugia de medo de te ver 
morrer morrestes sem sentir que 
morrias enquanto corria avenida
fora a querer atravessar entre os
carros sem olhar aos lados para ser
atropelado não saber da verdade que
havias morrido mas morrias de 
verdade a deixar-me morto absorto
abstrato oblíquo sem entender o 
absurdo que a morte causa ao ente
que a gente ama se amei alguém 
ao não amar nem a mim mesmo 
amei a tu que morreste a matar-me
a seguir morto atrás de ti
que nem me conhecias

BH, 0170402024; Publicado: BH, 020502024.