terça-feira, 19 de agosto de 2025

CHICO BUARQUE, PEDAÇO DE MIM:

Pedaço de mim

Oh, pedaço de mim

Oh, metade afastada de mim

Leva o teu olhar

Que a saudade é o pior tormento

É pior do que o esquecimento

É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim

Oh, metade exilada de mim

Leva os teus sinais

Que a saudade dói como um barco

Que aos poucos descreve um arco

E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim

Oh, metade arrancada de mim

Leva o vulto teu

Que a saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quarto

Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim

Oh, metade amputada de mim

Leva o que há de ti

Que a saudade dói latejada

É assim como uma fisgada

No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim

Oh, metade adorada de mim

Lava os olhos meus

Que a saudade é o pior castigo

E eu não quero levar comigo

A mortalha do amor

Adeus


na última batida do teu coração quando

na última batida do teu coração quando
definitivamente pararam os movimentos da
sístole da diástole o meu quase saiu pela boca
impedi-o com a palma da minha mão enquanto
o universo num grito infinito explodiu meus
tímpanos o caos implodiu meu cérebro vaguei
pelo espaço eterno a procurar a morte sem
sorte ainda não encotrei a minha ou já a
encontrei não sei pois agora não sei de mais
nada como nunca soube nem nunca saberei
porém para que saber dalguma coisa depois da
última batida do teu coração? bom mesmo
então é não saber nunca de nada nem de
agradecer ou de pedir perdão ou de pedir paz ou
de pedir amor ou de dar amor amar serei
homem comum do lugar comum mau a fazer o
mal sem igual nunca o bem sem olhar a quem
todo homem para ser homem tem que ser 
assim sangue nos olhos ódio na face
preconceitos na voz igual à uma pessoa
salafrária tal a um pastor malafaia ainda um
macedo a falar em nome de deus a prometer
os céus a pregar a salvação a ser reverendados
reverenciados pelo gado cristão evangélico ou
não gado é gado em qualquer religião ou em
qualquer ocasião seguirei solitário sempre
sozinho o teu coração o meu já não me
pertence jaz já o levaste contigo quando
partiste só o arcabouço do meu peito vazio
agora é que exala no exílio da minha rua esse
mau cheiro de cadáver em decomposição

BH, 070702025; Publicado: BH, 0190802025. 

estás sem amor estás sem mulher estás sem dinheiro

estás sem amor estás sem mulher estás sem dinheiro
sozinho no rio de janeiro sem dinheiro estás sem amigo
vira todo mundo inimigo ninguém dá mais atenção
nem o pastor da igreja uma benção nem te chama de
irmão ou o padre faz uma encomendação sem dinheiro
não tem samba no terreiro batucada mulata cerveja
gelada segues pelas praias leme copacabana arpoador
ipanema leblon olhas os dois irmãos corcovado
cristo redentor pão de açúcar nenhum milagre
feito por deus nosso senhor cai do céu azul sol a pino
suor na pele sal fino calor só falta agora a polícia
puxar um papo reto num forjado ou uma bala pedida
mandar-te para o saco feito malandro que perdeu a
majestade a dignidade que ninguém mais o respeita
nas rodas de malandros capoeiras rasteiras cais não
levantas mais levas porrada levas sarrafo és passado
para trás entras nas filas pelo parceiro carregas
embrulho para o chegado carregas o pesado para o
irmão chegas ao fim do dia sem condição não saíste do
anonimato ainda sem algum na mão nem ogun
quer ajudar-te oxum chega para lá perdeste os orixás
também não foste ao terreiro nem levaste flores à
iemanjá assim não dá morres afogado na preamar
fingias que sabias nadar acompanhaste em transe
uma morena nua bonita de lá não soubeste mais
voltar só o corpo a boiar encalhou nas areias brancas da praia

BH, 0110702025; Publicado: BH, 0190802025.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

NIRVANA:


 

um dia me lembro de tudo que esqueci aqui

um dia me lembro de tudo que esqueci aqui
escrevo onde só escrevi o que esqueci é que
agora escrevo como um morto sem lembrança
sem memória sem recordação em vida só soube
chorar não queria lembrar de nada só queria
esquecer de tudo hoje explode a cabeça implode
o cérebro ao tentar lembrar dalguma coisa
para escrever nunca encontro nada foram-se
os tempos dos romances das poesias dos poemas
agora são só confetes serpentinas  purpurinas
fantasias alegorias perfumarias enredos superficiais
sambas comerciais marchas de infantarias
cadências de artilharias atropelos de cavalarias
acabaram-se a rebeldia a evolução a revolução
a vanguarda acabou-se o modernismo voltou-se
o conservadorismo o imperialismo o colonialismo
o capitalismo ainda dita as velhas regras da
esvravidão da exploração o liberalismo ainda
controla a vida a morte o sul o norte não
temos saída saúda só ataúde quando temos
dinheiro quando não temos nem existimos
que se foda o mundo inteiro aí jovens com
cabeças de velhos conservadores de senhores
de engenhos feudais de capitães do mato  de
capatazes de fazendas de café ou casa grande
de burgueses medievais de elites pré-históricas
jovens outrora geniais hoje destilam preconceitos
ódios pensamentos monstruosos fundamentalisras
de igrejas construídas em cima de depósitos de ossos

BH, 0110702025: Publicado: BH, 0180802025.

domingo, 17 de agosto de 2025

ACDC:


 

o meu único livro é um livro universal infinito

o meu único livro é um livro universal infinito
a minha única obra-prima jamais ganhará o
prêmio nobel de literatura não a pensam
estilosa pelo contrário gritam que é horrorosa
que acompanha o mundo cruel que admira
israhell que condena a palestina o terrorismo de
gaza que não luta pelo fim do bloqueio
econômico a cuba o meu único livro nunca será
lido é um livro de letras pré-históricas é um livro
de palavras rupestres rudes rotas nenhuma
editora quererá publicar meu livro septuagenário
onde pulsa um coração de puta o coração duma
travesti negra preta cabocla mulata esmagada
pelo calcanhar da elite esmigalhada pela
opressão da burguesia relhada nos pelourinhos
do sistema onde só nós negros somos relhados
não deixeis as crianças terem acesso a este
livro profano herético pagão que só merece a
fogueira da inquisição pois expulso do santuário
excomungado pelos papas borgia meu livro é
uma orgia não tem poemas não tem poesias só
bacanal de bacantes bacanas que batem
palmas aos poderosos balançam as joias aos
reis às rainhas aos príncipes jogueis este livro
no abismo do vulcão em oferenda ao mundo
cão ao caos da fornalha da bíblia aumentada
sete vezes caceis este livro das bruxas das
luxúrias dos magos malignos do gigante de são
ciprião meu livro não fará parte de nenhuma
biblioteca só passeará nos jardins das flores do
mal dos maus que pensam que o mundo é um
paraíso que a terra é um éden meu livro é só um
terreiro de macumba uma escola de aprendiz de magia negra

BH, 040602025; Publicado: BH, 0170802025.