sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

alguém para dizer alguma coisa

alguém para dizer alguma coisa
num momento de aflição 
e a rua está vazia
e a avenida perdida
e a cidade fantasma
e rente aos muros as sombras esvanecem-se
e não se ouve um assobio de ave
ou um pio dum piado
ou um cicio de serpente
ou um sibilo de víbora
ou um chacoalhar de cascavel
e ninguém se apresenta no deserto
nenhuma miragem no oásis
e o que resta lamenta
ou chora melancolia
ou implora em preces
e não se diz a palavra chave
ou a palavra mágica
ou a senha que num golpe de lucidez
destravou o universo
e organizou o caos no organismo
e perfilou nos estados da matéria
a esperança de unificar os átomos
e acelerar as partículas das moléculas
numa geração de energia nunca vista
nem no sol que de milênios em milênios
preserva a vida onde a morte impera
e espera aí parece que agora um ser
foi capaz de dizer a palavra reveladora
e a conjectura escancarou a lucidez
e as soluções engoliram os mistérios
e espatifaram os enigmas
e gravou-se no paredão com o fogo do núcleo
o que é o universo para quem pode criar um universo?
e as palavras invencíveis
e invulneráveis continuam lá para quem
quiser ler
ou gravar outra inscrição com fogo na face
da montanha de diamante
e nunca mais se esperou de alguém alguma
coisa para se ouvir pois todas as coisas estão
aí ditas com suas mensagens infinitas

BH, 01601002022; Publicado: BH, 03001202022.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

alguém sabe o segredo duma oração

alguém sabe o segredo duma oração
ou duma prece
ou duma reza simples mas que
sejam perfeitas?
a minha avó sabia
e rezava para cachumba
e orava para espinhela caída
e benzia com arruda de guiné para cobreiro
e erisipela
e fazia preces para assombrações
e mais ladainhas aos santos
e santas que
menino desconhecia
e hoje ainda desconheço
e a minhs avó rezava para corpo fechado
e para os corpos das putas da rua franisco sá
muitas vezes retalhados às giletadas
e às navalhadas
e até punhaladas
e várias vezes deparei com putas no casebre no qual minha avó morava
e malino até bolinavla algumas
às escondidas
e a minha avó bebia cachaça
e fumava cigarro de palha
e mascava fumo de rolo
e enquanto minha mãe fazia compras
surrupiava alguns produtos dos vendeiros
das feiras
e brinquedos para mim
das lojas da rua direita do centro da cidade
e não deixava a minha mãe me bater
e sempre me levava às procissões
e às missas com o padre a me abençoar
várias vezes contrariado
e me ensinava a fumar
ao me mandar acender o cigarro de palha
no fogão à lenha
e me ensinava a beber
ao me dar o restinho de pinga que ficava
no fundo da canequinha
e me ensinou a comer pimenta
da pimenteira plantada à porta do barracão
de pau a pique que ficava à beira da rua do
pau velho sentido baixinha na cidade de
teófilo otoni
e não tinha banheiro
e as necessidades eram jogadas pela
janelinha do fundo ao lado dum espaço
entre o barraco
e o barranco
e a água era de pote
ou de moringa
mas era um lugar que mais tarde na minha adolescência da mocidade
atravessava toda a cidade
satisfeito para visitar

BH, 01401202022; Publicado: BH, 02701202022.

e um dia ainda hei de viver

e um dia ainda hei de viver
e nem que seja por um segundo
e o mundo então se regozijará
de que vivi um segundo
e de novo de geração em geração
louvarei os antepassados que
sustentaram os meus ombros
e os meus ancestrais que
guiaram os meus passos
e os meus antecedentes que
deram os caracteres
para os meus descendentes
e seguirei mesmo que
não seja um valente pois
preciso seguir a poesia
e necessito seguir o poema
e regar o pomar
e molhar o jardim
e colher as flores
e salvar a flora
e abençoar a fauna
e da natureza morta fazer uma obra-prima
de natureza viva
e mais obras de arte
e mais obras de belas artes
e pararei numa esquina já livre da mortalha
da encruzilhada
e não precisarei de pedir mais licença
se serei o ser
e a lei
e o áulico
e o vassalo bastardo fidalgo herói
sem vitória
sem glória
sem história
ou bastião
ou baluarte
ou panteão
e todo o universo será o resumo num ponto
que num caos gerará outro universo
e com um ser completo que
se libertou de ser complexo

BH, 01501202022; Publicado: BH, 02701202022.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

tudo o que se faz hoje

tudo o que se faz hoje
se não for o mais superficialmente possível
não há um like
ou uma única curtida
ou um compartilhamento
e se for algo que requer raciocínio
ou razão
ou noção
ou discernimento
e interpretação
e pensamento
aí o certo é passar em brancas nuvens
e todos somos contaminados por essa
preguiça moderna
e o mais trabalhoso que podemos fazer no
nosso esforço é ver
e ver o corpo nu
e ver a bunda dum
e ver as nádegas doutro
e as genitálias doutras
e os genitais doutros
e as palavras chulas
e os comportamentos vis
e as atitudes vãs
e os gestos vãos
e as expressões ocas
e os ares de vácuos
e duma hora para outra são milhões
de visualizações
e dum dia para o outro são mais milhões
de viralizações nas mídias das redes sociais
das vadiagens
e das vagabundagens afins
e das vergonhas que não envergonham
nem padres
nem pastores
nem homens
nem mulheres
e quanto mais explícito o fato
maior é o boato
e corre rápido no vazio como um quem que
tem pernas curtas
e rápidas
e que atingem ao mesmo tempo corações
e cérebros aflitos sem sentimentos
e sem sentidos
e qualquer argumento gera diploma a um 
jumento tanto que temos um na presidência
e que se diz a todos pulmões que
é negacionista
e terraplanista
e anti vacina
e com o sucesso momentâneo
ajuda na derrocada do país

BH, 0210102022: Publicado: BH, 02301202022.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

o sonho do poeta é a obra-prima que mudará a vida

o sonho do poeta é a obra-prima que mudará a vida
ou é a obra de arte que mudará o comportamento
e não é mudar a vida para ganhar dinheiro
e nem é mudar o comportamento para se pensar superior
e sim a passar a experimentar pessoalmente
o que escreve ao agir com os atos
e com os gestos
e os comportamentos que desenha
e que almeja atingir
e de que vale a pena o poeta escrever que
ama
e odiar?
0e de que vale a pena o poeta escrever paz
e fazer a sua guerra particular?
e poeta precisa ser despreendido
e livre das materialidades
e liberto do desprezo
ao não desprezar os semelhantes
e ser um assemelhado
e não ser dessemelhante
e mostrar nos atos a própria grandeza
e banir a pequenez
e a mesquinhez que causam vergonha a
quem escreve poemas
ou poesias
e implora por novas filosofias
e sem contra argumentos o indiferente é o
único que merece desprezo
ou os mortos que enterrem seus próprios mortos
ou quem guiará a humanidade com as novas
sociedades conservadoras que surgem com o
velho ódio
ou no antigo racismo
ou no xfobismo
ou no misoginismo
e pensar num poeta assim misógino
ou racista
e que tipo de poesia poderá fazer?
e que tipo de poema poderá escrever?
o poeta não pode ser um ser dentro do seu ser
e ser um ser às vistas doutros seres
ou então deixa de ser poeta
e quando o chamarem de poeta chora
como se chora um morto

BH, 0290502019; Publicado: BH, 02201202022.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

nunca mais vou sair por aí a procurar

nunca mais vou sair por aí a procurar
um ponto de apoio
uma alavanca
uma pedra fundamental
ou uma rocha filosofal
ou uma pedreira descomunal
ou um rochedo marco inaugural
e sem fé transporei montanhas
e a pé vencerei cordilheiras
e de vertentes em vertentes
e de veredas em veredas
e a costear as falésias
e a ombrear os desfiladeiros
e os paredões consagrados serei a ponte no
abismo universal
e a gota d'água que transbordará os oceanos
e a molécula de ar que sufocará as atmósferas
e o grão de areia que desmoronará as dunas
e o raio de luz que esgotará os sois
e serei o excesso dos excessos
e fartarei os famintos famélicos fominhas
e darei de beber aos sedentos
e pararei num despenhadeiro
e nunca mais procurarei agulha no palheiro
e nunca mais o eco ecoará a maldição de nunca mais
e à beira dos milenares canions virarei
a estátua de sal por não ter olhado para atrás
e em letras de fogo-fátuo escreverei no
pedestal do monumento o fatídico epitáfio
do corvo nunca mais

BH, 01501202022; Publicado: BH, 02001202022.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

e o poeta ama ou não é poeta

e o poeta ama ou não é poeta
e o poeta contesta
e como amar em sociedade tão desumana?
e como ser humano em humanidade tão
composta de seres desprovidos de amor?
e teimam com o poeta
e então o poeta não é poeta
mas é só o poeta que tem que amar?
e é só o poeta que tem que dar exemplo?
e combater o mau?
e não fazer o mal?
e o poeta pensa que todo mundo deveria agir
igual a um poeta
e com filosofia
e com psiquiatria
e com psicologia
e aí sim a natureza viraria um jardim
e ninguém a atacaria
e nem a queimaria ou destruiria a fauna
ou destruiria a flora ou devastaria
o meio ambiente
e o ecossistema
e a biodiversidade
e a sociedade seria um exemplo para a humanidade
e todo ser que habita a terra seria um poeta
e faria poesias
e poemas
e sonetos
e sairiam obras-primas dos guetos
e obras de arte das janelas
e portas das favelas
e este é um sonho dum poeta a luta pelo
direito humano de nos amar uns aos outros
sem precisar nos armar
e não o luto causado pelo ódio
e do preconceito
e o rancor pela cor
e a dor do desamor
e a raiva que a igualdade caus
e a cólera da liberdade
e o pavor dos direitos
e o temor das revoluções
e o poeta ama
e nunca deixa de amar mesmo quando ama
e não sabe como demonstrar

BH, 0130602022; Publicado: BH, 01901202022.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

pai é muito chato

pai é muito chato
vive a tentar a me tirar do quarto
a me levantar do chão
veio aqui à porta
bateu palmas de leve
perguntou não quer ir para lá não?
nem respodi só espalmei a mão
para um tapinha
continuei sentado no chão
pai foi à janela
do quarto da irmã mais velha
olhou a rua
olhou a matinha que tem
em frente ao barraco que
a gente mora aqui na boca da favela
e a matinha é até muito legal
tem muitas árvores preservadas
moram muitos miquinhos chamados saguis
antigamente apelidados de soinhos
pai vive a me assediar
para que visite esses lugares
não quero nem saber
penso que hoje esteja de bom humor
pois não briguei
nem agredi pai
aproveito o silêncio
fico quieto
pai voltou da janela
se sentou à mesa
antes colocou
dois gomos de linguiça no feijão
mais um pouco d'água que
o almoço se completará com arroz
farofa de ovos
pai fala que por aí
tem gente a comer ossos
pés de galinha
cabeças de peixe
a disputar comida no lixo
a pedir coisas nos semáforos
aí até me sinto um ser no luxo
apesar dum cara que
pai chama de inominável
ter cortado um benefício meu

BH, 040502022; Publicado: BH, 0701202022.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

nem sei o que é que está escrito aqui

nem sei o que é que está escrito aqui
mas sei o que é que está escrito nas estrelas
e nas estrias das entranhas dos universos
e nem sei o que dizer
ou o que falar
mas sei o que dizem
e o que falam os organismos
e os órgãos dos infinitos
e ouço os gritos dos mundos que são
engolidos pelos buracos negros
e assunto o chiar do sol ao se espreguiçar
para nascer
e bocejo à boca da noite igual a minha filha
a bocejar para dormir
e nem sei o que escuto
e nem sei o que ouço
ou ausculto dos zumbidos
e dos zunidos normais mas vibro em todas
as vibrações celestiais
e os sussurros das fontes nos escuros
e os murmúrios dos riachos
e dos regatos a espantar os augúrios
e sorrio para os rios como se fosse uma fonte
defronte dum monte
e não sei se são fiji é que sou sarará ararat
e não sei se são sião
é que sou ancião cafuzo cabloco confuso
confúcio
e no cio criolo mulato moreno pardo preto
e nem sei mais nada que sou mas sou tudo
que sou
e até o nada sou
e nado no barro branco
e na argila
e na tabatinga
e tenho da caatinga a catinga natural que
exala o vivo
e me disfarço com a fragrância da flor do
meu cadáver a se decompor
e num canto espanto as moscas
e deixo as abelhas na minha pele a captar o
pólen
e a sugar o néctar
e o leite e o que
mais querem do meu teor

BH, 0130602022; Publicado: BH, 0601202022.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

as peles que me cobrem não são só sete peles

as peles que me cobrem não são só sete peles
e são talvez até mais do que setenta vezes sete
e são couros dos meus tios negros
e epidermes das minhas tias negras
e pergaminhos escuros
e queimados de sois africanos dos meus avôs pretos
e das minhas avós pretas
que se transformaram em
papiros de manuscritos de sangramentos
escorridos de pelourinhos
e ali a história é contada ao avesso
e a cantiga antiga cantada de traz para a frente
e a saga negada
e sempre seremos os vilões
e nunca os heróis
e sempre seremos os escravos
e escravizados
e a elite
a burguesia representantes dos colonizadores
nunca nos pedirão perdões
nunca nos darão nossas cartas de alforrias
e sofreremos escárnios
e sofreremos racismos
e sofreremos esculachos
e demais preconceitos
e sem os nossos direitos de sermos
pelo menos seres humanos
respeitados pela humanidade como
componentes exemplos da raça humana
sem despertar suspeitas
e lustrarei minhas peles ancestrais
e engraxarei  os pelos
e os cabelos
e as dermes
e as tais epidermes de tudo
dos meus antepassados
donde sou composto com organismo
intestinos
e entranhas
e tutanos
e medula
testosterona
e adrenalina
e libido
e óvulos
espermas
e sangue muito sangue arterial
para escrever as linhas trilhadas
e as correntes quebradas
os elos despedaçados
e os grilhões arregaçados
e os precipícios superados
e os temores liberados
e todas as nossas falas
e rezas
orações
e preces
serão em nome da liberdade
das nossas gerações em gerações descendentes livres como a brisa do vento nos chama
nos olha nos olhos de livres irmãos

BH, 030401002022; Publicado: BH, 0201202022.

e o outro nome do país hoje é tristeza

e o outro nome do país hoje é tristeza
e tristeza que parece não ter fim
e nem querer ir embora
nem por favor
mas o que é preciso é que
essa tristeza vá embora
o mais cedo possível
para que o brasil possa voltar a sorrir
e a nação virou um túmulo
eternamente em luto
e o povo não pode mais lutar pois
não consegue comprar o que comer
e o que beber
e o que vestir
e o homem brasileiro virou esmoler
pelos semáforos
e debaixo das marquises
e sob os viadutos
e crianças nos sinais a fazer sinais
com as mãos a pedir
cada vez mais
e a elite fecha os vidros dos carros
a burguesia blinda os automóveis
e a polícia protege a plutocracia
e o judiciário conivente com a cleptocracia
e o povo trabalhador brasileiro
sem emprego 
sem trabalho
e sem trabalhismo
e com desprezo ao trabalhista
e o que se encontra pelas ruas
são os intermitentes
e os falsos empreendedores
e os chamados escravos modernos que
servem sem direitos
e por baixa remuneração
e são os sem razão
e muitas vezes até sem noção
que ainda justificam o neoliberalismo
e o capitalismo
e falam que coisas de direito
de igualdade
e de fraternidade
e de liberdade
são coisas do comunismo
e do socialismo
que a bandeira nunca será vermelha
e que são cristãos armamentistas
e seguem um torturador genocida apologista
de todo tipo de violência contra tudo
e contra todos e que
ainda é negacionista
e escarnecedor
e néscio
um ser escroto nefasto e pernóstico

BH, 0140602022; Publicado: BH, 0201202022.

e o mundo despreza o imundo jair messias bolsonaro

e o mundo despreza o imundo jair messias bolsonaro
e o mundo civilizado ignora a pessoa nefasta
que fala que foi batizada no rio jordão
e o mundo desconfia que o tal foi batizado no rio estige
pelo caronte
e o seu cão de guarda cérbero
a filosofia chora
e a sociologia chora
e a história chora
e o assassino continua
com a sua gana destruidora
e a educação chora
e a cultura chora
e os que não gostam de nada disso
batem palmas para o dromedário
elogiam o mamute
e tecem loas ao mastodonte
e enaltecem o ogro
e aclamam o pitbull
e até as mulheres servem ao escroto
e o mundo das civilizações conhece a história
que será destruída
e sabe dos destinos daqueles que
compõem o séquito maldito
e os asseclas do cão que
se apoderou do seio de tão nobre
nação que hoje saúda celeiro de celerados
paiol de desmiolados
e ceara de insanos
ou armazém de bestas apocalípticas
e de mentes de mefistófeles
e de mentecaptos inaptos
energúmenos incorporados de evangélicos
outros religiosos medievais
e o mundo globalizado se afasta
do ostomizado jair messias bolsonaro
e seu governo lobotomizado
composto de corpos de invertebrados
e o país governado por um bando de malucos
desce ladeira abaixo locomotiva desgovernada
de loucos sem controle
e hospício a céu aberto
e só o alienista bruxo do cosme velho
para internar todos esses alienados

BH, 0270280402019; Publicado: BH, 0201202022.