quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

a vida não inspira nada a ninguém

a vida não inspira nada a ninguém
não é aquela vida ávida por desejos
prazeres amores a herança encarnada
é ódio rancor ira raiva vingança contra
mulheres velhos crianças criaturas
nem se fala na natureza já tantas vezes
dizimada maltratada mares poluídos
oceanos mortos rios exterminados
lagoas secas lagos contaminados 
nascentes abortadas a vida não é amor
paz meio ambiente lazer viver 
a vida é matança chacina execuções
papai mata mamãe mamãe mata bebê
polícia assassina jovens nos subúrbios
das periferias países perseguem 
refugiados flagelados governos fazem
vistas grossas ao racismo xenofobismo
nazismo injustiça violência covardia
a vida não é poesia a dar à luz um
poema nem com cesariana nem com
aborto provocado parto normal o
poema nasce morto a musa maior a 
mulher mãe avó tia prima irmã amiga
amante amada a que era a fruta da 
poesia o fruto jaz a um canto amontoado
pele de papel ossos de vidro olhos baços
a definhar lentamente sem aparentar
nada do que outrora foi gente a vida 
hoje é indigente indiferente à felicidade
justifica-se o injustificável com a maior
naturalidade pensa-se o impensável
maquinalmente maquiavélicamente a notícia
amanhã é esfregada na cara de todos 
até arder os olhares o bombardeio segue
interminável na ansiedade de provocar
outra tragédia que gere mais audiência
do que a anterior com pavor horror 
redobrados segue-se a vida contaminada
numa aberta ferida crônica viciada

BH, 080102017; Publicado: BH, 0220202024.  

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

fotofóbico não gosto de luz

fotofóbico não gosto de luz
pois tenho horror à luz que 
fere minhas retinas turva meus
olhos por isso apago a luz do quarto
a luz do banheiro a luz da cozinha
o barracão na boca da favela mergulha
na penumbra da solidão das trevas que
baixam nuvens negras que pairam na 
claridade do dia tudo se transforma 
em obscuridade não se enxerga um 
palmo à frente do nariz se sêneca me
visse hoje com certeza continuaria a
gritar para mim luz luz luz no silêncio
ouço o eco das vozes dos fantasmas
o arrastar das correntes os gritos
assobios choros sorrisos gargalhadas
os fantasmas fazem festas festins
nas cavernas dentro de mim
o lugar mais parece dum abexim
das terras da abissínia das antigas
florestas negras na qual a luz não entra
por nada já até acostumei a não usar 
os olhos nem os abro mais quando
vou à rua só de óculos de soldador
para não ser incomodado pela 
claridade do dia mas um dia se
merecer na esperança de viver os
restos dos meus dias mesmo que
sofra com a dor um milagre poderá
trazer-me de volta à luz do amor assim
além de viver poderei até de novo nascer

BH, 0601002023; Publicado: BH, 0190202024.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

já quis ser o touro bebia água em demasia

já quis ser o touro bebia água em demasia
até quase a barriga estourar para ficar do 
tamanho do touro fazia igual à rã enchia 
os pulmões o peito de ar ao máximo
trancava a respiração na tentativa de os 
alargar que um dia cheguei a desmaiar fui
socorrido a tempo hoje sou cachorro
vira-latas cão caim sem dono de rabo entre
as pernas a ladrar estas laudas sem me 
envergonhar da heresia da estupidez sem
ruborizar-me o grande ápice de ignorância
segui a vida até aqui inchado de tudo que
não presta que comprava no mercado sódio
glicose gorduras trans triglicérídes colesterol 
pressão alta obesidade mórbida diabético
cardíaco com glaucoma próstata estourada
pernas com varizes veias entupidas dentes
estragados peles com feridas ossos doloridos
juntas enferrujadas sempre a procurar um
recôndito num quarto escuro para me esconder
nas sombras quebrei todos os espelhos vivo
opaco obtuso oprimido a perambular para cá
para lá como o pêndulo dum relógio velho sem
cordas que só balança quando se abre a janela
uma ou outra lufada de vento por acaso entra
a trazer um remorso do universo através dela

BH, 0601002023; Publicado: BH, 0150202024.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

cada vez mais estarrecedor

cada vez mais estarrecedor
horror terror estertor cada vez mais
clamor de mães cada vez mais
desespero de pais o que é que a gente faz
aonde a gente vai?
já não vamos aos shopping
Já não vamos às praias
o lazer agora é nos cemitérios
nos necrotérios ou
instituto médico legal a reconhecer
cadáveres irreconhecíveis dos nossos
meninos meninas crianças ainda
não temos mais adolescentes para matarem
parem de matar nossos filhos morrem cedo
não chegam à idade adulta não namoram não casam
viram defuntos presuntos disformes pelas quantidades
dos furos das balas justamente para
ser estarrecedor horror terror estertor
olha a cara do meu menino
não tem mais rosto
olha a face da minha menina
era linda um anjo
olha no que se tornou
uma máscara mortuária uma mortalha
não terei mais em meus braços minha criança
a me abraçar agora terei cadáver para chorar
mas as minhas lágrimas secaram
alguém me ajuda a chorar
chore por mim para me aliviar
não tenho em quem me apoiar
quando a polícia chega só quer é nos matar
incomodamos mesmo quando estamos quietos
nos nossos horrores
nas nossas infelicidades
nos semblantes dos nossos estertores

BH, 0501002023; Publicado: BH, 080202024.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

é uma pedrada na cara

é uma pedrada na cara
a pesada na porta do barraco
no barranco na boca da favela
é um tapa na cara do favelado num esculacho
a polícia invadir a favela a meter o terror
é uma bala perdida na cara
tudo é na cara do favelado
não importa que seja parte do povo trabalhador brasileiro
não tem importância o favelado
tudo é bandido como diz o delegado
a polícia só se defende ou faz o seu trabalho
se ninguém reclamar pela justiça
ou direitos humanos ou da violência da polícia
reclamou levou na cara morreu
é assim que é o sistema
toma lá dá cá parece até dó ré mi fá
a polícia não pode é se dar mal
mas era só um menino
mas era só uma menina
estudavam jogavam futebol 
mas estava com um fuzil na mão
estava não seu moço
foi plantado depois que estava morto
o que que a senhora está a dizer?
que a polícia o exterminou?
sim seu moço era o meu filho
nunca fez mal a ninguém
tinha pai tinha mãe tinha irmão tinha irmã
mas era pobre era preto era favelado
só isso aí já é motivo para ser exterminado
não teria futuro mesmo
não seria gente
olha a aglomeração deia o rabecão passar
não atrapalha o caveirão
cuidado que a gente passa por cima
tudo isso é mais um tapa na cara inerte da nação 

BH, 0501002023; Publicado: BH, 0602020204.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

silêncio de infelicidade de morte

silêncio de infelicidade de morte
no barraco do barranco na boca da favela
parece que todo mundo morreu de bala perdida
ou a policia invadiu a favela executou os favelados
um por um dentro dos seus barracos
pois não ouço um murmúrio qualquer que seja
uma música nem funk nem brega nem sertaneja
samba já não se fala mais na favela
pagode sumiu com batuque atabaque
macumba tambor tantã de batucada
a favela está igual a um cemitério ou 
necrotério ou instituto médico legal
como se todo mundo tivesse morrido
morreram os malandros as mulatas os mestres-salas
morreram os menestréis as porta-bandeiras
passistas cavaquinistas cuiqueiros ritmistas
agogôs tamborins na favela agora
virou um céu mas quando a polícia
exterminadora do futuro chega
o que impera é o medo do presente
o pontapé na porta do barraco
tiro na cara corpo na vala
criança no esgoto choro no gueto
lençol manchado de sangue
música fúnebre réquiem enterro 
mães desesperadas
pais atônitos
ninguém pode fazer nada no tapa na cara
todo bandido finge de trabalhador
tudo traficante que está a atirar na policia
que está a fazer o seu digno trabalho a
ceifar a juventude na fonte do rejuvenescimento
ouço nas janelas dos barracos nos barrancos
as namoradas nos lamentos

BH, 0501002023; Publicado: BH, 01º0202024.

O DEUS DE SPINOZA:

Einstein deu conferências em várias universidades dos EUA, a pergunta recorrente que os alunos fizeram foi:

- Acreditas em Deus? - Ele sempre respondia: Acredito no Deus de Spinoza. Quem não leu Spinoza não entendia a resposta. Baruch De Spinoza foi um filósofo holandês considerado um dos três grandes racionalistas do século da filosofia, junto com o francês Descartes. Este é o Deus ou a natureza de Spinoza: Deus teria dito: “Pare de ficar rezando e batendo no peito! O que quero que faça é que saia pelo mundo e desfrute a vida. Quero que goze, cante, divirta-se e aproveite tudo o que fiz pra você. Pare de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que você mesmo construiu e acredita ser a minha casa! Minha casa são as montanhas, os bosques, os rios, os lagos, as praias, onde vivo e expresso Amor por você. Pare de me culpar pela sua vida miserável! Eu nunca disse que há algo mau em você, que é um pecador ou que sua sexualidade seja algo ruim. O sexo é um presente que lhe dei e com o qual você pode expressar amor, êxtase, alegria. Assim, não me culpe por tudo o que o fizeram crer. Pare de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo! Se não pode me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de seus amigos, nos olhos de seu filhinho, não me encontrará em nenhum livro. Confie em mim e deixe de me dirigir pedidos! Você vai me dizer como fazer meu trabalho? Pare de ter medo de mim! Eu não o julgo, nem o critico, nem me irrito, nem o incomodo, nem o castigo. Eu sou puro Amor. Pare de me pedir perdão! Não há nada a perdoar. Se eu o fiz, eu é que o enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso culpá-lo se responde a algo que eu pus em você? Como posso castigá-lo por ser como é, se eu o fiz? Crê que eu poderia criar um lugar para queimar todos os meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que Deus faria isso? Esqueça qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei, que são artimanhas para manipulá-lo, para controlá-lo, que só geram culpa em você! Respeite seu próximo e não faça ao outro o que não queira para você! Preste atenção na sua vida, que seu estado de alerta seja seu guia! Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é só o que há aqui e agora, e só de que você precisa. Eu o fiz absolutamente livre. Não há prêmios, nem castigos. Não há pecados, nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro. Você é absolutamente livre para fazer da sua vida um céu ou um inferno. Não lhe poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso lhe dar um conselho: Viva como se não o houvesse, como se esta fosse sua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não houver nada, você terá usufruído da oportunidade que lhe dei. E, se houver, tenha certeza de que não vou perguntar se você foi comportado ou não. Vou perguntar se você gostou, se se divertiu, do que mais gostou, o que aprendeu. Pare de crer em mim! Crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que você acredite em mim, quero que me sinta em você. Quero que me sinta em você quando beija sua amada, quando agasalha sua filhinha, quando acaricia seu cachorro, quando toma banho de mar. Pare de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra você acredita que eu seja? Aborrece-me que me louvem. Cansa-me que me agradeçam. Você se sente grato? Demonstre-o cuidando de você, da sua saúde, das suas relações, do mundo. Sente-se olhado, surpreendido? Expresse sua alegria! Esse é um jeito de me louvar. Pare de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que o ensinaram sobre mim! A única certeza é que você está aqui, que está vivo e que este mundo está cheio de maravilhas. Para que precisa de mais milagres? Para que tantas explicações? Não me procure fora. Não me achará. Procure-me dentro de você. É aí que estou, batendo em você.”