Corras minha pena por este papel vejas o que podes fazer por mim
Doas me o teu sangue injetas em minhas veias vazias a tua tinta essencial
Faças esta transfusão de sangue salvas este cão danado sedento
A morrer corras minha pena ao morrer dás me a tua vida a minha já
Não vale mais a pena nada pois nem uma simples poesia é capaz de
Costurar embrenha numa mata não sabe mais sair cai numa
Ribanceira fica lá estendida a esperar chegar alguém à beira do
Barranco é só o calango quem vem olhar a ficar a balançar a cabeça
O resto a deixar para lá o sol passa nem sequer dá um bom-dia
Ao chegar a noite a lua nem vem minha pena querida destás assuntas
Espias um tantinho falas para mim ô esse menino fazes assim não
Estouvado falar para mamãe que fiz xixi na cama de novo sonhei que
Estava na casinha na privada deu no que deu quando acordei vixe
Nossa Senhora mamãe vai me bater não tem jeito vou apanhar de novo
Bem feito quem mandou mijar na cama? viajei no tempo no espaço
Viajei na era entrei pelo cano fui tomar banho no rio mamãe não
Queria tinha medo que morresse afogado no entanto morri de tantas
Outras maneiras nestas inúmeras vidas de asneiras oh seu estúpido
Olhas o carro vais atravessar a rua sem olhar? acabas por ser atropelado
Por um carro guiado por um maluco ou um bêbado qualquer bem minha
Pena já fizeste a tua parte me aturaste nesta noite calorenta onde ninguém
Mais me aguenta és a minha única companhia neste papel creme neste
Muro de lamentações nesta fuga do racional para o irracional da realidade
Para a falsidade da consciência para a inconsciência ai como dói o meu
Dodói é um velho coração que trago aqui guardado dentro deste peito
Inusitado qualquer dia para aí vou para o beleléu fica esta pena vazia
Estas palavras ocas vãs este papel coadjuvante que não é nobre nem
Principal estas letras irregulares quem um dia na minha pós-história
Quererá decifrá-las? são letras rupestres cuneiformes são letras rústicas
Do tempo das cavernas do dilúvio das placas de argilas em que foram
Relatadas a destruição de Sodoma Gomorra são letras achadas em
Grutas em ruínas de cidades devastadas por vulcões noutras
Civilizações afundadas por águas de mares de oceanos já não dizem mais
Nada estas letras teimosas que não querem parar de preencher as lacunas
Brancas deste papel que nem um papiro não é não é nem um manuscrito
De sábios de sacerdotes de filósofos de sátrapas escribas profetas
São letras dum mortal talvez já até morto não é um discípulo tenho certeza
Não traz uma mensagem ou uma profecia ou a resposta dalgum oráculo
Não traz esperança ideal ou ideia não traz um pensamento revolucionário
Ou um teor visionário traz um pedaço de carvão para riscar o chão uma
Vara para atravessar o rio um cajado para se consolar na presença dos
Lobos das estepes tem que abrir os olhos por onde andar por que
Senão tudo faltará debaixo dos pés nada respaldará o caminho seguido
Por veredas da justiça basta não quero mais que corras assim creio que
Já estás cansada já verteste muito sangue continuo sedento sou um
Vampiro bebedor de sangue de penas ainda mais penas assim iguais a ti
Que se deixam manipular por um maluco qualquer basta não sangres mais
Não sei mais do que sou capaz perdi o sonho vago neste pesadelo medonho
Não sou modelo de comportamento nem exemplo de ser humano não sou
Grato não trago virtude não tenho o hábito da educação não sei
Agradecer esqueço de todos que me fizeram o bem só me lembro de
Quem me fez o mal cobro de todos a quem fiz alguma coisa sei que
Nunca fiz nada para ninguém nem para a raça humana basta já matei-te
Várias vezes estás a chorar entre os meus dedos a jorrar a doar-me os
Teus últimos suspiros de vida ainda não estou satisfeito a noite não
Terminou o vampiro só se recolhe ao romper da aurora tem medo do dia
Do canto dos pássaros tem medo da vida gosta do cheiro da morte
Tem medo da sorte corre para os braços do azar só sabe matar não sabe
Amar não sabe ter paz amanhã estarás jogada num canto este papel no
Fundo dalguma gaveta de cômoda esquecida nalgum lugar estas palavras
Estarão envelhecidas estas letras roídas pelas traças pelas baratas sou
Devorado pelos vermes mais que porém tudo esteja aqui escrito
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