Por Nênis para as Blogueiras Negras
Sempre foi muito mais fácil, pra mim, conversar com meninos do que com meninas – e isso acontece até hoje. Desde criança, consigo contar nos dedos quantas amigas meninas eu tinha na escola, na vizinhança e até nas brincadeiras inventadas. Era muito difícil eu conseguir me identificar com as meninas que estavam ao meu redor quando criança, era realmente muito difícil, tanto que eu chorava pra não ir pras aulas de balé, queria porque queria fazer judô com os meus amigos, mas a escola não deixava, nem com pedido da minha mãe – as meninas fazem balé e os meninos judô, sem mais.
Fui crescendo e as escolhas foram aumentando. Meus brinquedos mudaram muito. Depois do looping de carrinhos e da cidade de Lego, minha mãe tentou me dar brinquedos ‘de menina’ e me deu de presente um carro da Barbie, eu já tinha duas das bonecas – acho que foi um dos presentes mais legais que eu já ganhei. Colei todos os adesivos que via pela frente no carro, cortei o cabelo de uma das bonecas e pedia ajuda pra minha irmã com as roupinhas, personalizei tudo e inventei, junto com os meninos, uma corrida maluca com as Barbies. Lembro muito bem da mãe de um dos meninos do meu prédio falando: ‘Olha ali a negrinha moleque, nem com brinquedo da Barbie sabe se comportar igual a uma mocinha.’
Demorou um tempo pra que os meninos me deixassem entrar pra quadra e jogar com eles. Meninas não sabiam jogar bola, com absoluta certeza eu ia atrapalhar o jogo, ou ia irritar todo mundo porque iam ter que me ensinar a jogar, até o dia que deixaram e todo dia tinha alguém me chamando pra ir lá completar o time (mesmo se já tivesse alguém na reserva). Durante os jogos eu não podia me destacar dos outros meninos, eles começavam a pegar muito mais pesado e dizer que ‘futebol é jogo de homem, se quer jogar tem que aguentar’ e eu, sem saber se era verdade mesmo, aguentava, mas me superava a cada jogo.
Meus pais não conseguiram encontrar nenhum clube com time feminino, então comecei a treinar pro time mirim do Corinthians, masculino mesmo – era a única menina do time. Depois de certo tempo jogando lá, as piadinhas ficaram mais abertas: ‘qualquer dia a gente abre a porta do banheiro e vê ela mijando em pé também’, ‘quando eu tiver uma namorada ela nunca vai chegar perto dela, macaca de chuteira’ e coisas similares. Me chateava muito tudo aquilo, mas eu não me atreveria a dizer pros meus pais, eu sei que eles não iam mais deixar eu ir jogar e eu gostava muito, mas depois de um tempo parei de ir, não sei se pelo tratamento do time, ou pelo treinamento físico que não era adequado pra mim.
Na escola, minhas amigas contavam dos meninos, perguntavam se estavam bonitas pra atravessar a sala pra beber água e voltavam perguntando se o menino tinha olhado pra ela. Elas me invejavam porque eu conversava com eles, perguntavam como eu conseguia e eu nunca soube responder. O dia mais esperado de um dos anos da escola foi o dia da festa junina, que íamos todos brincar de verdade ou desafio, eu não queria brincar, mas era a única chance de uma das minhas amigas poder beijar o menino que ela ~amava~. O pessoal se juntou em um círculo, a garrafa estava no meio e a brincadeira ia começar até que eu perguntei se, nos desafios, menina podia beijar menina – ninguém me respondeu, mas pelo olhar de todo mundo eu só dei de ombros e fiquei ali olhando rolar a brincadeira, não quis nenhum desafio, minha amiga beijou o menino que ela queria e dois dias depois estava chorando no meu colo porque ele não gostava dela.
Eu voltava da escola de perua e minha maior ansiedade era quando a ruiva de outra escola voltava com a gente. Ela era mais velha, sempre sorria pra mim e me contava umas histórias muito legais. Um dia eu vi na mochila dela um arco-íris e perguntei se ela gostava e ela me disse que não era um arco-íris, era o símbolo da diversidade. Questionei sobre a diversidade e ela disse que um dia eu saberia, que não seria ela que ia explicar e me deu um beijo na testa. Eu fiquei estranha. Fiquei com calor e frio ao mesmo tempo, eu não conseguia abrir meus olhos mas eu a via ali na minha frente perfeitamente e quando cheguei em casa desmontei na cama num choro de preocupar a casa inteira, mas eu não sabia porque que eu tava chorando – até chegar nos meus 12 anos.
Era show da Dominatrix (banda de punk rock feminista que sou muito fã) e eu tava com uma vontade muito doida de subir no palco e pular em todo mundo ali, e fui! Não sei quanto tempo durou o mosh, mas assim que senti meus pés no chão senti alguém me puxar pela cintura e me pedir um beijo, antes que eu pudesse entender o que tava acontecendo, eu mesma tinha beijado a menina, tinha sido o máximo! Voltando pra casa, tentei ao máximo esconder que estava muito contente, pra não ter que dizer o porquê e quando me liguei exatamente do motivo, entrei num desespero sem tamanho: ‘acho que sou lésbica’.
Demorei um bom tempo pra compreender e com a ajuda da minha irmã, consegui contar pros meus pais depois de alguns anos. Minha mãe com medo do que poderia acontecer comigo na rua, ela me lembrava de que eram dois pesos muitos grandes pra eu carregar – negra e lésbica, complicado. Meu pai transbordando força, orgulhoso pela determinação e confiança que depositei nele por contar.
Eu sou a Nênis. Negra, lésbica, canhota, curiosa e assim vai. E você, é o quê?
A Nênis se chama Anna Claudia, é lésbica, trabalha com jogos online e é apaixonada pela Kathleen Hanna. Descobre um pouco mais todos os dias e nunca está satisfeita e, por isso, agradece a todxs que escrevem na interwebz. E também escreve no CanalSap.
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