sexta-feira, 22 de março de 2013

Pier Paolo Pasolini, A religião do meu tempo; BH, 0220302013.


Dois dias de febre! 
O bastante
Para não poder suportar o exterior,
Mesmo levemente renovado pelas nuvens
Ouentes de Outubro, e agora tão moderno
- Que me parece não poder já compreendê-lo -
Nos dois rapazes que sobem a rua
Lá ao fundo, na alvorada da sua juventude…
Sem graça, ignorados: mas os cabelos
Reluzem sob uma festiva camada
De brilhantina – roubada no armário
Dos irmãos mais velhos; e a gangue das calças,
Desbotadas pelo sol de Ostia e pelo vento,
Foi sendo roída por sóis citadinos,
Milenares; mas é obra esmerada
A que o pente lhes fez na risca
Dos cabelos louros e nas poupas.
Surgem à esquina de um prédio,
Eretos, mas cansado da subida,
E o que vejo desaparecer por fim são os jarretes,
À esquina de outro prédio. 
A vida
É como se nunca tivesse existido.
O sol, a cor do céu, a hostil
Suavidade que o ar toldado
Por renascidas nuvens dá de novo às coisas,
Tudo acontece como numa hora
Passada da minha existência: misteriosas
Manhãs de Bolonha ou de Casarsa,
Doridas e perfeitas como rosas,
Renascem aqui, a esta luz vista
Por dois olhos tristes de rapaz
Que mais não conhece do que a arte
De se perder, claro em fundo escuro
E eu nunca pequei: sou
Puro como um santo velho, mas
Também nunca possuí; o dom
Desesperado do sexo desapareceu
Em fumo: sou bom
Como um louco. 
O passado
É aquilo que tive por destino,
Nada mais que vazio desconsolado…
E consolador. 
Observo, debruçado
Da sacada, os dois rapazes que vão, lestos,
Ao sol; e aqui estou, como um menino
Que não chora apenas por aquilo que não teve,
Mas também pelo que não terá…
E nesse pranto o mundo é um odor,
Nada mais: violetas, prados, que a minha mãe
Tão bem conhece, e em que primaveras…
Um odor que ondula para se tornar, aqui
Onde o pranto é doce, matéria
De expressão, tonalidade… voz familiar
Desta língua louca e verdadeira
Que tive ao nascer e que na vida está imóvel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário