terça-feira, 26 de abril de 2011

Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, Ode Marcial; BH, 0250402011.

                                                                                                  (A Raul Leal)

I

Clarins na noite,
Clarins na noite,
Clarins subitamente distintos na noite...

(É de cavalgada, de cavalgada, de cavalgada o ruído longínquo?)

O que é que estremece de diverso pela erva e nas almas?
O que é que vai alterar e já lá longe se altera -
Na distância, no futuro, na angústia - não se sabe onde -?

Clarins na noite,
Clarin... na noite,
Clari-i-i-i-ins...

É de cavalgada,
É de cavalgada, de cavalgada,
E de cavalgada, de cavalgada, de cavalgada
O ruído, ruído, ruído agora já nítido.

Vejo-as no coração e no horror que há em mim:
Valquírias, bruxas, amazonas do assombro...
São uma grande sombra - conjunto de sombras pegadas que mexe na noite.
Vêm em cavalgada, e a terra estremece duas vezes,
E o coração como a terra estremece duas vezes também.

Vêm do fundo do mundo,
Vêm do abismo das coisas,
Vêm de onde partem as leis que governam tudo;
Vêm de onde a injustiça derrama-se sobre os seres,
Vêm de onde se vê que é inútil amar e querer,
E só a guerra e o mal são dentro e fora do mundo.

Hela-hô-hôôô... helahô-hôôôôô......

                                                                                                                         2/8/1914

II

O#h¬

Ruído longínquo e próximo não sei por quê
Da guerra europeia...
Ruído de universo de catástrofe...
Que vai morrer para além de onde ouvimos e vemos?
Em que fronteiras deu a morte rendez-vous
Ao destino das nações?

Ó Águia Imperial, cairás?
Rojar-te-às, negra amorfa coisa em sangue,
Pela terra, onde sob o teu cair
Ainda tens marcado o sinal das tuas garras para antes formar o voo
Que deste sobre a Europa confusa?

Cairás, ó matutino galo francês,
Sempre saudando a aurora?
Que amos saúdas agora
Qual sol de sangue no azul pálido matutino?
Por que atalhos de sombra que caminho buscas,
Que caminho para onde?
Ó civilizações chegando à encruzilhada noturna
Donde tiram o ponto-de-apoio

E donde partem caminhos curvos não sei para onde,
E não há luz sobre as indecisões...

Deus seja conosco...
Chora na noite a Senhora de Misericórdia,
Torcendo as mãos, de modo a ouvir-se que elas se torcem
No silêncio profundo

Deus seja conosco no céu e na terra,
Ó Deus Tutelar do Futuro, ó Ponte
Sobre os abismos do que não sabemos que seja...
Deus seja conosco e, não esqueçamos nunca
Que o mar é eterno e afinal de tudo tranquilo
E a terra grande e mãe e tem a sua bondade
Porque sempre podemos nela recostar a cabeça cansada
E dormir encostados a qualquer coisa.

Clarins na noite, desmaiando... Ó Mistério
Que se está formando lá fora, na Europa, no Império...
Tropel vário de raças inimigas que se chocam
Mais profundamente do que seus exércitos e suas esquadras,
Mais realmente do que homem contra homem e nação contra nação...

Clarins de horror trêmulo e frio na noite profunda...
E o quê?
Tambores para além do mistério do mundo?
Tambores de quê... dormis deitados, dobres minúsculos sobre o quê?
Passa na noite um só passo soturno do uno exército enorme...
Clarins subitamente mais perto na Noite...
O Homem de mãos atadas e levado entre sentinelas
Para onde, por que caminho, para ao pé de quem?
Para ao pé de quem, clarins anunciadores de quê?
Títiro, a tocar flauta e os campos de Itália sob César Augusto
Ah, porque se armam de lágrimas absurdas os olhos
E que dor é esta, do antigo e do atual e do futuro,

Que dói na alma como uma sensação de exílio?
Títiro a tocar flauta em Éclogas longínquas...
Virgílio a adular o César que venceu
Per populum dat juri...
Um pobre em guerra,
Ó minha alma intranquila...
Ó silêncios que as pontes
Sob as fortalezas antiquissimamente teriam,
Sabeis e vedes que a terra treme sob os passos dos exércitos
Fluxo eterno e divino das ondas sob os cruzadores e os torpedeiros...

Oh o maior horror de terem cessado os clarins,
Que sons indecisos nos traz o que substitui o vento
Nesta profunda palidez dos que mataram?
Quem é que vem?
O que se vai dar?
Quem começa a soluçar na calma noite intranquila,
Meu irmão?
A irmã de quem?
Ó anos de infância
Em que eu olhava da janela os soldados e via os uniformes
E a sangrenta e carnal realidade das coisas não existia para mim!...

Choque de cavaleiros onde?
Artilharia, onde, onde, onde?
Ó dor da indecisão com agitações inexplicáveis à superfície de águas estagnadas...
Ó murmúrio incompreensível da morte como que vento nas folhagens...
Ó pavor certo de uma realidade desenhada pelos espelhos indecisos...

(Lágrimas nas tuas mãos
E plácido o teu olhar
E tu, amor, és uma realidade também...
Ah, não ser tudo senão um quadro, um quadro qualquer...
E quem sabe se tudo não será um quadro e a dor e a alegria
E a incerteza e o terror
Coisas, meras coisas, nada senão coisas sem aonde, mas que percebemos

Lágrimas nas tuas mãos, no terraço sobre o lago azul da montanha
E lento o crepúsculo sobre os cumes altos das nossas duas almas
E uma vontade de chorar a apertar-nos aos dois ao seu peito...)

A guerra, a guera, a guerra realmente.
Excessivamente aqui, horror, a guerra real...
Com a sua realidade de gente que vive realmente,
Com a sua estratégia realmente aplicada a exércitos reais compostos de gente real
E as suas consequências, não coisas contadas em livros,
Mas frias verdades, de estragos realmente humanos, mortes de quem morreu, na verdade,
E o sol também real sobre a terra também real
Reais em ato e a mesma merda no meio disto tudo!

Verdade do perigo, dos mortos, dos doentes e das violações,
E os sons florescem nos gritos misteriosamente...
A gaiola do canário à tua janela, Maria,
E o sussurro suave da água que gorgoleja no tanque...

O corpo...
E os outros corpos não muito diferentes deste,
A morte...
E o contrário disso tudo é a vida...
Dói-me a alma e não compreendo...
Custa-me a acreditar no que existe...
Pálido e perturbado, não me mexo e sofro.

III

Hela hoho, helahoho!
Desfilam diante de mim as civilizações guerreiras...
Numa marcha triunfal,
Numa longa linha como que pintada em minha alma,
Sucessivamente, indeterminadamente,

Couraças, lanças, capacetes brilhando,
Escudos virados para mim,
Viseiras caídas, cotas de malha,
Os prélios, as justas, os combates, as emboscadas.
Archeiros de Crecy e de Azincourt!
Armas de Arras.
E tudo é uma poeira incerta, uma nuvem de gente anônima
Que o vento da estratégia levanta em formas diversas,
E em ondas sopra entre os meus olhos atentos
E o Sol da verdade eterna, e a encobre sinistramente.

Marcha triunfal, onde a um tempo e não a um tampo,
Onde numa simultaneidade por transparências uns de outros,
Surgem, aparecem, aglomeram-se em minha consciência,
Os guerreiros de todos os tempos, os soldados de todas as raças,
A couraças de todas as origens,
As armas brancas de todas as forjas,
As hostes compostas de usos marciais de todos os exércitos.

IV

A Guerra!
Desfilam diante de mim as civilizações guerreiras...
As civilizações de todos os tempos e lugares...
Num panorama confuso e lúcido,
Em quadras misturadas e não misturadas, separadas e compactas, mas só quadras
Em desfile sucessivo e apesar disso ao mesmo tempo,
Passam...
Passam e eu, eu que estou estendido na erva
E só os carros passam, passam - cessam depois para nós mesmos
Vejo-os e o meu espanto nem se sente calmo nem interessado,
Nem os vê nem os deixa de ver,
E eles passam por mim como uma sombra pelas águas.

Ah a pompa antiga, e a pompa moderna, os uniformes dos engenhos de guerra,
A fúria eterna e irremediável dos combates
Os mortos sempre a mesma misteriosa morte - o corpo no chão ( e o que é o
Mundo, afinal, e aonde?)
Os feridos gemendo do mesmo modo em corpos os mesmos
E o céu, o eterno céu insensível sobre isso tudo!

V

Barcos pesados vindo para as melancólicas sombras
Dos grandes olhos incompletos dos arcos das pontes
Enormes escaladas medievais dos altos muros do castelo
(Luzem como escamas os aços dos elmos e das couraças)
E os escudos deitados clamam como goelas fumegantes dos que assaltam
E o súbito desabrochar aéreo das grandes flores amarelas e violentas das granadas.
(Onde o teu cavalo pôs a pata, Átila, torna a crescer erva
E tudo renasce e a vida da natureza cobre
O que fica das conquistas)
Antenas de ferro - capacetes em bico - de Bismarck

VI

As mortes, o ruído, as violações, o sangue, o brilho das baionetas...
Todas estas coisas são uma só coisa e essa coisa sou Eu...

VII

Inúmero rio sem água - só gente e coisas,
Pavorosamente sem água!
Soam tambores longínquos no meu ouvido,

E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores
Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo!

Helahoho! helahoho

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta
Ela cosia à tarde indeterminadamente...
A mesa onde jogava os velhos,

Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror.

Helahoho! helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta
E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração.
Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou,
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso como uma sombra disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito
E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os olhos de repente.

Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas as violências,
A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a quebrar
E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.

Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e bati-lhe,
Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei e que matarão também
Pediram-me sem saber como toda piedade por todos.
Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o,
Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada...
Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou-me o sopro de Deus.

Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.
Ela chora a um canto sem pensar na máquina de costura.
Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviúve e a quem aconteça isto?
Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos,
Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,
Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso se passou,
E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo.
Deus tenha piedade de mim que não a tive de ninguém!

VIII

Que imperador tem o direito
De partir a boneca à filha do operário?
Que César com suas legiões tem justiça
Para partir a máquina de costura da velha?
Se eu for pela rua
E arrancar a fita suja da mão da garota
E a fizer chorar, onde encontrar qualquer Cristo?

Se eu tirar com uma pancada
O bolo barato da boca da criança pobre
Onde encontrarei justiça no mundo,
Onde me esconderei dos olhos do Vulto

Invisível que espreita pelas estrelas
Quando o coração vê pelos olhos o mistério olhar o universo?
Minha emoção concreta, ó brinquedo de crianças,
Ó pequena alegria legítima da gente obscura,
Ó pobre riqueza exígua dos que não são ninguém...

Os móveis comprados com tanto sacrifício,
As toalhas remendadas com tanto cuidado,
As pequenas coisas de casa tão ajustadas e postas no lugar
E a roda de um dos mil carros do rei vencedor
Parte tudo, e todos perderam tudo,

IX

Por aqueles, minha mãe, que morreram, que caíram na batalha...
Dlôn - ôn - ôn - ôn...
Por aqueles, minha mãe, que ficaram mutilados no combate
Dlôn - ôn - ôn - ôn...
Por aqueles cuja noiva esperará sempre em vão...
Dlôn - ôn - ôn - ôn...
Sete vezes sete murcharão as flores no jardim
Dlôn - ôn - ôn - ôn...
E os seus cadáveres serão do pó universal e anônimo
Dlôn - ôn - ôn - ôn...
E eles, quem sabe, minha mãe, sempre vivos, com esperança...
Loucos, minha mãe, loucos, porque os corpos morrem e a dor não morre...
Dlôn - dlôn - dlôn - dlôn - dlôn - dlôn...
Que é feito daquele que foi a criança que tiveste ao peito?
Dlôn...
Quem sabe qual dos desconhecidos mortos aí é o teu filho
Dlôn...
Ainda tens na gaveta da cômoda os seus bibes de criança...
Ainda há nos caixotes da dispensa os seus brinquedos velhos...
Ele hoje pertence a uma podridão órfã somewhere in France.

Ele que foi tanto para ti, tudo, tudo, tudo...
Olha, ele não é nada no geral holocausto da história
Dlôn - dlôn...
Dlón - dlôn - dlôn - dlôn...
Dlôn - dlôn - dlôn - dlôn...
Dlôn - dlôn - dlôn - dlôn - dlôn - dlôn...

X

Ai de ti, ai de ti, ai de nós!
Por detrás destas leis inflexíveis e ferozes da vida
Haverá alguma ternura divina que compense isto tudo?

Ainda tens o berço dele a um canto, em casa...
Ainda tens guardados os fatinhos dele, de pequeno...
Ainda tens numa gaveta alguns brinquedos partidos...
Agora, sim, agora, vai olhá-los e chorar sobre eles...
Não sabes onde é a sepultura do teu filho...
Foi o nº qualquer coisa do regimento um tal,
Morreu lá pra Mame em qualquer parte...
Morreu...
O filho que tu tiveste ao peito, que amamentaste e que criaste...
Que remexera no teu ventre...
O rapazote feito que dizia graças e tu rias tanto...
Agora ele é podridão...
Bastou em linha alemã
Um bocado de chumbo, do tamanho dum prego, e a tua vida é triste...
Receberás um prêmio do Estado.
Dirão que o teu filho foi um herói...

(Ninguém sabe, de resto, se ele foi herói ou não)
É um anônimo pra a história...
"Morreram 20 mil homens na batalha tal."
Ele era um deles...
E o teu coração de mãe sangrou tanto por esse herói de que a história não dirá nada...
O acontecimento mais importante da guerra foi aquele para ti...

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