Comentários surpreendentes à parte, a mim parece que, sem música, a vida seria insuportável, inviável. Eu sigo, portanto, o meu próprio caminho a carregar na memória a obra de uma eclética legião de heróis formada por cantores e compositores, não necessariamente brasileiros, já que a música é tão universal quanto a dor, o amor e uma rima pobre.
Em tempos de diarreia cultural, quando tantas músicas onomatopeicas descartáveis são vomitadas pela mídia, diuturnamente, nos ouvidos das novas gerações, eu percebo que o meu amor pela música não só se fortalece, mas, cresce ainda mais, principalmente quando recorro aos mártires da MPB, como Tom Jobim, Chico Buarque, Luiz Gonzaga, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Caetano Veloso, dentre outros.
Eu sinto pela obra de Chico Buarque um afeto particular pois, foi por meio das suas canções, tanto as românticas quanto as politizadas, que eu me aventurei a cantar, tocar o violão na solidão honesta do quarto ou na euforia manifesta dos saraus e festinhas da minha juventude. Bons tempos aqueles em que eu tive gana, cabelos, fãs volúveis, e sabia tocar de cor mais de cinquenta canções do Chico, sem reclamar de calos nas pontas dos dedos. Meus caros, tenho que admitir: eu era foda.
A Revista Bula convocou os seus leitores para um atrevimento, uma diversão, uma homenagem dentre tantas que virão, a escolha de uma seleção musical para o justo tributo a uma joia da MPB: pedimos para que os nossos leitores elegessem, dentre centenas de composições estupendas, as dez melhores canções de Chico em todos os tempos, as essenciais, as mais belas, as que tocassem fundo na alma, um suposto repertório para Deus ouvir — caso Chico nele acreditasse — durante a happy-hour celestial, sentado numa nuvem, a tomar licor de amarula, exaurido pelas lamentações, desanimado por ter criado o ser humano a sua imagem e semelhança. “Será que sou tão ruim assim?”, teria ele perguntado a um arcanjo.
A lista será, certamente, controversa. Mas, entendam dessa forma, viciados criadores de celeumas: a seleção, per se, é simbólica. Servirá, contudo, como lenitivo àqueles que jamais saciam a sua sede musical. Aquele tipo de música que, a despeito do declarado ateísmo de Chico, comprova a existência de um Criador emanado, não das páginas emboloradas de um calhamaço de parábolas antiquadas e reacionárias, ou da frieza longínqua de uma nuvem vaporosa estacionada no céu, mas, sim, da voz honesta de um cantor ou do som cativante da sua ferramenta de melhorar mundo: o instrumento musical. Ficou assim a lista da Revista Bula.
Quem te viu, quem te vê (1967)
Quando se fala que a música sertaneja contemporânea é trilha sonora de dar em corno, por causa do reincidente roteiro do amante traído que chora pelo descaso da amada, muita gente reclama de preconceito musical. Esta composição de Chico prova que é possível lamentar um amor não correspondido sem parecer oligofrênico. Eu sei que é difícil, mas não custa caprichar mais nas letras, caubóis do asfalto.
Apesar de você (1970)
Cobrir o rosto com um pano preto e sair quebrando as vidraças dos bancos com blocos de concreto é mole. Quero ver ter a coragem para fazer o levante de um povo concebendo canções tão revolucionárias quanto esta, talvez, a mais emblemática e politizada composição de Chico Buarque.
Cotidiano (1971)
Um dos mais relevantes riscos de amar é cair na rotina. Dizer tudo igual, de forma diferente, a cada santo dia: eis aí um desafio para poucos.
Construção / Deus lhe pague (1971)
Chico é um dos poetas maiores da MPB. Certamente, muito mais competente como letrista do que como músico e intérprete. Na letra de Construção, uma avalanche de palavras proparoxítonas reforça a contundência da temática social. Eu sei que você não acredita, Chico, mas, mesmo assim, Deus lhe pague por você ter criado duas canções tão memoráveis.
O que será (à flor da pele), [1976]
Frequentemente, eu me pego pensando: com tanto lixo tocando na TV e no rádio, o que será da música popular brasileira? Ou será que só fiquei velho e ranheta?
Olhos nos olhos (1976)
Canções como esta, dentre tantas que Chico Buarque compôs para o universo feminino, certamente fazem com que as mulheres se sintam vingadas de homens como eu, como você e, por que não dizer, como o próprio Chico, já que ninguém é de ferro no que tange a pisar os corações. O mulheril simplesmente adora esse tipo de música. Se demorasse meia hora mais para nascer, Chico nasceria mulher.
Pedaço de mim (1978)
“A saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu…”. Versos escritos assim jamais saem da memória de quem ama a poesia. A letra desta canção é um presente que dispensa comentários.
Cálice (Chico e Gilberto Gil, 1978)
Por ingenuidade, ignorância ou má fé, há quem defenda o cerceamento da liberdade e o retorno dos militares ao poder como uma fórmula eficiente para se colocar ordem nas coisas. A história não perdoa, incautos: calem-se!
Geni e o Zepelim (1978)
Uma das características que o ser humano tem de pior é a hipocrisia. Pior que ela, talvez, a ingratidão. Esta composição de Chico conta uma incrível história de abuso e intolerância. Em tempos de homofobia e ódios declarados, até parece que esta letra foi escrita hoje cedo.
Eu te amo (Chico e Tom Jobim, 1980)
Sugiro aos rapazes que guardem esta canção de amor de Chico Buarque a tiracolo, perto das mãos e dos ouvidos, para o caso de precisão, para o recurso de uma derradeira tentativa para dissuadir a mulher amada que deixou de amar. Eu não afirmaria 100% aos meus colegas de desassossego que se trata de um adjutório infalível, mas, que faz balançar o coração, ah, isso faz. Chico, não me leve a mal, pode até parecer frescura da minha parte, mas… eu te amo, cara!
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