A secretária bateu discretamente na porta, entrou com passinhos miúdos e disse com voz de secretária eficiente:
– Doutor Nava, o doutor Vinicius chegou.
– Diga que entre. E hoje não estou pra mais ninguém. Se for urgente, diga que tive um caso complicado e não voltarei. Anote na agenda.
Pedro Nava se levantou e foi receber o visitante.
– Atrasado como sempre. Muita ressaca?
– Pouca – respondeu o poetinha. – Apenas o suficiente pra encher o saco.
Nava fechou a porta e voltou para a escrivaninha. Sentou-se e cruzou os dedos debaixo do queixo. Olhou em volta e extraiu um suspiro do fundo do baú.
– Como sabem, meus amigos, o caso é grave.
Todos assentiram. Esse todos incluía João Cabral de Melo Neto, Gilberto Freyre e Carlos Drummond de Andrade, além do recém-chegado Vinicius de Moraes.
– Se Manu não estivesse tão doente até seria possível. O coração está péssimo e ele mal consegue dar dois passos sem começar a tremer. Como pode pensar em deitar com uma mulher nessa situação?
– Talvez seja delírio – aventurou-se João Cabral. – Esse meu primo nunca bateu bem. Desde pequeno tem ideias estranhas.
– Mas por que aos 82 anos e logo com uma negra?
– Saudades da casa grande – disse o sociólogo Gilberto. – Em suas noites de insônia deve recordar os gemidos através das paredes de pau a pique. As sinhás se faziam de surdas, mas os meninos esticavam os ouvidos. Comigo era assim.
O PASSADO EXPLICA
Certa tarde calorenta, naquele verão de 1968, Manuel Bandeira confidenciara a Gilberto Freyre que estava louco para transar com uma negra.
– Como? – espantou-se o conterrâneo. – Na sua idade? Não vai me dizer que nunca transou com uma negra, nem em seus tempos de menino.
– Pois é. Nunca transei. E agora me deu uma vontade tremenda.
A Livraria São José estava cheia, como toda sexta-feira. Numa mesa na calçada, Manu e Gilberto, galos velhos, bebiam limonada e viam desfilar as mocinhas em flor. Suspiravam saudosos. Foi quando atravessou uma negra deslumbrante.
– Uau! – entusiasmou-se Gilberto. – Que coisa mais linda, Manu!
No embalo, Manu revelou o segredo. Falou da juventude no Recife e no Rio. Lembrou quando visitava a zona, entrando e saindo sem nunca se decidir. E sempre escolhendo uma branca; no máximo, uma mulata.
– Naquele tempo eu tinha vergonha.
– Vergonha de quê, homem de Deus?
– Ora, Gilberto, você sabe muito bem – irritou-se Manu. – Toda a nossa turma tinha preconceito. Ninguém transava com negras, a não ser escondido.
– Sei disso. Eu também era assim.
DE VOLTA AO CONSULTÓRIO
– O problema é sério, meus amigos – recomeçou Nava. – Nascemos num país complicado. Ninguém tem preconceito e todo mundo tem. Vejam os casos de Graciliano Ramos e Humberto de Campos. Um, alagoano; outro, maranhense. Tinham verdadeiro pavor de negras. De mulatas, também. Graciliano fingia que não, mas está evidente nos livros. Humberto, mais direto, confessava.
– De fato – concordou Drummond. – O velho Graça passou enormes apertos na cadeia. Comunista, aceitava os negros como iguais, mas creio que só na teoria. Dá pra perceber seu racismo nas “Memórias do cárcere”. Disfarçado, mas dá.
– Tempos estranhos aqueles – intrometeu-se Vinicius. – No “Diário secreto”, do Humberto, sente-se que pertencia a uma elite branca, mesmo quando precisava alugar quartos em sua casa, transformada em pensão. Vivendo na maior pindaíba!
– Tá bom – interrompeu Nava. – Sei disso tudo. Somos todos racistas, uns mais disfarçados que os outros. Mas o problema é o seguinte: como vamos satisfazer o fetiche tardio de Manu? A essa altura, negra, branca, morena, loura, mulata, tanto faz. Para ele, esse tipo de exercício não é mais uma questão de cor. É de sobrevivência.
– Tenho uma sugestão – aventurou-se Gilberto. – Aqui no Rio, com tanta negra dando sopa, será difícil afastá-lo da ideia. Tropeçamos nelas o tempo todo. Algumas tão lindas que não tiro a razão do Manu. Por que não o convencemos a passear um pouco? Digamos, uma temporada entre amigos de São Paulo ou Belo Horizonte? Racistas como essas duas, não conheço outras cidades no Brasil.
– Se você não conhece, eu conheço – disse João Cabral. – Podemos incluir no roteiro Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Racismo por racismo todas empatam. Tenho um amigo negro, muito viajado, que tentou se hospedar num hotel paulista e disseram não haver vaga.
– E daí? Podia não haver mesmo.
– Poder, podia. Mas logo em seguida, desconfiado, ele pediu a um amigo branco que tentasse no mesmo hotel, e o amigo conseguiu. Como viajavam sempre juntos, e viajavam com frequência, decidiram repetir a brincadeira em Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Não preciso contar o resultado, preciso?
- É o diabo, resmungou Gilberto. – Nunca imaginei que a casa grande estendesse tão longe seus tentáculos. Talvez escreva um ensaio a respeito.
– E para entrar em prédios residenciais grã-finos de São Paulo? – continuou João Cabral. – Todos os porteiros torciam o nariz pra ele. Se não fosse o amigo branco ao lado, mandariam que subisse pelo elevador de serviço.
– O problema não é esse! – Nava quase gritou. – Se fosse pra acabar com o racismo no Brasil seria melhor desistir. Voltemos ao ponto: como convencer Manu a viajar? Com que desculpa?
– Isso já é assunto pra discutir num bar – apressou-se a dizer Vinicius, cuja ressaca começava a incomodar. – Sugiro pensar na solução tomando uns chopes.
Ansioso por um trago, levantou-se imediatamente e caminhou para a saída, seguido pelos outros. A questão do preconceito podia esperar. Mais urgente era, entre umas e outras, livrar o velho poeta das ardentes tentações da carne negra.
Nava deixou que se adiantassem. Então pegou o chapéu, saiu da sala, despediu-se da recepcionista e encontrou os amigos entrando no elevador.
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