quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Street Shopping Planalto, 3; BH, 0200802011; Publicado: BH, 0270902012.

Fiquei de olho aceso na costa a
Iluminar o mar para que as quilhas
Das naus não se rompessem nos
Escolhos muitas perdidas naus inda
Vagam por esses mares tenebrosos a procura
De caminhos marítimos em busca de
Especiarias tesouros terras à vista
Fiquei no porto sentinela atalaia
Vigias a velar pelas velas desfraldadas pelos
Mastros rompidos pelas proas popas históricas
Esquecidas nos fundos dos oceanos
Desconhecidos passei por canais que
Ligam mares que ligam cabos que
Ligam terras continentes vi nas
Frestas universais os antepassados
Das minhas avós olhavam para mim
Com brilhos nos olhos iluminavam
Minhas sendas enfrentaram monstros
Marinhos que me despertavam do
Sono faziam-me chamar por
Meus pais fiquei de madrugada para
Ver minha avó passar rente à parede de ondas
A clamar por minha mãe que
Não me batesse mais não minha
Mãe não atendia nem pelo amor
De Deus minha avó tentava ser
A minha salvação fiquei de peito
Aberto a cantar cantigas que os antigos
Antepassados escravos cantavam quis aprender
Com as escravas todos os cantos negros
Trazê-los livres na minha voz
Trazê-los livres nos meus braços
Fiquei libertador de almas escravas
A esperar nas encruzilhadas nas areias das praias
Por serenatas que as façam recordar
Dos antigos terreiros maternais

Street Shopping Planalto, 2; BH, 0200802011; Publicado: BH, 0270902012.

Meu coração explodiu em gozo precoce
Como numa ejaculação de adolescente
Jorraram-se jatos de sangue por todos
Os poros vi-me um polvo com seus
Tentáculos suas ventosas a sugar
As peles da menina dos olhos moços
De muitas vistas cristalinas pregadas
Em retinas rostos angelicais de marfins
De mármores clássicos de pedras especiais
Que formam corpos de Vênus de Milos
Meu coração abriu-se numa cratera
Como se cometa chocasse contra
Como se vulcões entrassem em erupções
Como se todas as mulheres entrassem
Ou atingissem o clímax o orgasmo ao
Mesmo tempo jorros óvulos
Para serem fecundados numa inspiração
A gerar filhos a gerar descendentes
Sucessores que nos engrandeçam
Que não nos diminuam como nos
Diminuem as bombas atômicas as armas
Nucleares de extermínio em massa
Todos os segredos dos astros estão nas
Nossas imaginações mas estúpidos
Procuramos nos próprios astros nos
Sentimos decepcionados por não
Desvendarmos nem a nós assim somos
Corações mentes indevidos sem
Sentidos a pensar como eternos
Adolescentes em frente aos espelhos
Que os mostram narcisos vislumbrados
Com os umbigos é um repertório
Ilusório bem sabemos permanecemos
Nele para não fecharmos o coração
Não nos chumbarmos uns doutros

Berthold Brecht, Aos que vão nascer; BH, 0270902012.

I
É verdade, eu vivo em tempos negros.
Palavra inocente é tolice. 
Uma testa sem rugas
Indica insensibilidade. 
Aquele que ri
Apenas não recebeu ainda
A terrível notícia.

Que tempos são esses, em que
Falar de árvores é quase um crime
Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Aquele que atravessa a rua tranqüilo
Não está mais ao alcance de seus amigos
Necessitados?

Sim, ainda ganho meu sustento
Mas acreditem: é puro acaso. 
Nada do que faço
Me dá direito a comer a fartar.
Por acaso fui poupado. 
(Se minha sorte acaba, estou perdido.)

As pessoas me dizem: 
Coma e beba! 
Alegre-se porque tem!
Mas como posso comer e beber, se
Tiro o que como ao que tem fome
E meu copo d’água falta ao que tem sede?
E no entanto eu como e bebo. 

Eu bem gostaria de ser sábio.
Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria:
Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve
Levar sem medo
E passar sem violência
Pagar o mal com o bem
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los
Isto é sábio.
Nada disso sei fazer:
É verdade, eu vivo em tempos negros. 

II
À cidade cheguei em tempo de desordem
Quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
E me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

A comida comi entre as batalhas
Deitei-me para dormir entre os assassinos
Do amor cuidei displicente
E impaciente contemplei a natureza.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As ruas de meu tempo conduziam ao pântano.
A linguagem denunciou-me ao carrasco.
Eu pouco podia fazer. 
Mas os que estavam por cima
Estariam melhor sem mim, disso tive esperança.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As forças eram mínimas. 
A meta
Estava bem distante.
Era bem visível, embora para mim
Quase inatingível.
Assim passou o tempo
Que nesta terra me foi dado.

III
Vocês, que emergirão do dilúvio
Em que afundamos
Pensem
Quando falarem de nossas fraquezas
Também nos tempos negros
De que escaparam.

Andávamos então, trocando de países como de sandálias
Através das lutas de classes, desesperados
Quando havia só injustiça e nenhuma revolta.

Entretanto sabemos:
Também o ódio à baixeza
Deforma as feições.
Também a ira pela injustiça
Torna a voz rouca. 
Ah, e nós
Que queríamos preparar o chão para o amor
Não pudemos nós mesmos ser amigos.

Mas vocês, quando chegar o momento
Do homem ser parceiro do homem
Pensem em nós
Com simpatia.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Street Shopping Planalto, 1; BH, 0190802011; Publicado: BH, 0250902012.

Um mundo está aberto à minha frente
Por incrível que pareça cabem
Diversos universos dentro deste
Mundo um mundo vasto que poderia
Ser vivido bem por quem soubesse
Viver transformá-lo melhorá-lo
Mas quem reflete atualmente com
Um sentido de mudar este mundo
Fazer dele um único universo
Viável em que possamos meditar a
Respeito da vida de como vivê-la
Com sabedora? um mundo está
Aberto à minha frente falta-me algo?
Falta-me visão de águia
Astúcia de serpente fico acordado
Justamente por que este mundo
Repleto de universos precisa de
Mim para pensá-lo poderia dormir
Como a maioria dos mortais
Comuns mas preciso cumprir minha
Missão sou um missionário um
Emissário sobrecarregado de bons
Maus pensamentos para serem
Analisados bons maus argumentos
Para serem defendidos no debate de
Que todos os universos deste mundo
Sejam convergidos para fora do caos
Do contrário temeremos o futuro
Civilização moderna não pode
Temer o futuro tem que esperá-lo
Sem temor com coragem com
Esperança mundo universos
Sociedades civilizações evolução vos
Espera o futuro nos espera vivamos

domingo, 23 de setembro de 2012

George Harrison, All Things Must Pass; BH, 0230902012.


Goethe, A noiva de Corinto


Goethe
        De Atenas provindo, a Corinto
Chega um jovem que desconheciam,
Como hóspede em domo distinto.
Os dois pais sempre se recebiam,
Ambos desde cedo
O moço e a moça
Noivo e noiva já se prometiam.


Mas será ele também lá bem-vindo,

Se boas graças nunca conquistou?
Com seus gentios é pagão ainda,
E o da casa em Cristo batizou.
Nova fé que fulge
Contra amor insurge
Qual erva daninha logo se arrancou.


Repousa a casa inteira, é tarde,

Sem pai ou filha, só, a dona domina;
Recebe o moço com boa-vontade,
Logo o melhor quarto ela lhe destina.
Uma ceia ostenta,
Bem alojá-lo tenta:
Depois diz boa noite, sai em surdina.


Entretanto o apetite é perdido

Farta refeição posta, a despeito;
Extenuado, de comes abstido,
Mesmo vestido faz-se ao leito;
Quase ele cochila,
Mas a porta estila
Esgueira-se ao quarto um afeito.


Ao clarão da luz, vê se insinuar

Pelo quarto, moça virginal
Brancos véus a acobertar,
Cingindo a fonte preto-ouro xal.
Tão logo o vislumbra
No canto à penumbra,
Espanta, mão alva eleva ao alto.


“Sou por acaso estranha”, diz ela,

“Que do hóspede nem tenho notícia?
Ah, assim mantêm-me eles na cela!
Por isso cometo a inconveniência.
Prossiga dormindo
Me esquivo, vou indo,
Saio como vim, peço licença.”


“Fique, jovem!” — grita o rapaz

Lépido num só pulo de seu tálamo:
“De Céres e Baco, as oferendas
Tens. Agora amor traz teu âmago.
O susto te descora
Vem, não vá embora,
Deleitemos dos deuses o júbilo!


“Fique longe, mancebo! Parado!

Não me é permitida a ventura.
Fatal passo, ah! já foi dado.
Boa mãe doente em insânia pura!
Caso convalesça
A promessa faz:
Que consagra filha aos céus em jura.


De deuses antigos o cortejo

Proscrito, a casa silencia logo.
Invisível um uno em adejo,
O salvador na cruz está morto.
E o imoleiro,
Não rês ou cordeiro,
Mas, seres humanos tem sacrificado.


Ele indaga as palavras pesando,

Que jamais com o espírito desavêm:
É possível ter num ermo aposento
Minha noiva em pessoa ante mim?
“Seja minha, criança!
Os pais com a fiança
Bênçãos celestes nos concedem.”


“Coração, não é a ti que destino!

É a mana que te hão de atribuir.
Enquanto na cela nefasta amofino,
Lembre de mim um dia no porvir,
Que só penso em ti
Pelo amor sofri
E a terra em breve há de cobrir!”


“Não! Eu juro, com a mão sobre o fogo

Vontade paterna compartilhar;
Nem perdida ou desdita, te rogo,
Vem para a casa comigo viajar.
Fique! Eu te peço!
Um sonho confesso.
Nossas núpcias em festim celebrar!


E trocam eles prendas de amor:

Ela dá-lhe um dourado adereço,
Por sua vez, faixa de prata cor,
Presenteia-lhe em terno apreço.
“Não é meu o xale!
Mas muito me vale!
Dê-me uma mecha de teu cabelo.”


Dos fantasmas soa a fúnebre hora,

Quando ela transforma-se langue.
Ávida sorve a pálida boca
Sôfrega o vinho tinto qual sangue:
Mas de trigo o pão,
Que o gentil em vão,
Lhe oferece, ela sequer o tange.


Estende ela o cálice ao moço,

Que ardente o esvazia num gole.
E suplica a cear licencioso;
Amor, que seu coração console.
Mas ela resiste,
Ao que ele insiste,
Até que na cama em pranto implore.


Aproxima-se ela, ajoelha:

“Desatino é ver teu sofrer!
Satisfaça-te e toque-me e olhe
Esses membros que estou a esconder.
Clara como a neve,
Mas fria como deve
A amada que vens de eleger.”


Ardente a cerra, abraço viril,

Intenso a estreita, a inunda:
“Eu desejo aquecê-la do frio,
Mesmo que tu me venhas da tumba!
Um beijo fervente!
Anseio eloquente!
Não te queima uma paixão profunda?”


E selando em êxtase o amor,

Lágrimas ao desejo se mesclam;
Suga-lhe ela à boca o calor,
Presos um ao outro se infundem.
Seu ardor feroz
Anima-a voraz;
Não lhe pulsa o coração, porém!


Nisso a mãe pela casa vagueia

Sempre alerta, tão tarde em ofício,
Detém-se escutando à soleira,
Um singular gemido e bulício.
Em pleno alvoroço
A moça e o moço
Indícios de amor em balbucio.


Ela imóvel detém-se ao umbral,

Suspeita mas reluta uma vez,
Cisma e apura paixão cabal,
Que evoca a sanha cupidez —
“O galo canta, amada! —
Mas noutra madrugada...”
Beijos, beijos. “Tu vens, talvez?”


Não contém a raiva em delonga,

A porta ela abre de chofre:
“Há cá nesta casa songa-monga,
Que ao forasteiro se oferece?”
Entra e ojeriza,
Ao clarão divisa —
Santo Deus! A lha reconhece.


O jovem no primeiro espanto

Tenta com o véu a impudente,
Com o tapete, cobrir-lhe o desmanto;
Mas ela se ergue logo saliente.
Como um fantasma
Que do alto plasma
Longa e lenta, plana ao leito.


“Mãe, mãe!” Diz com voz de sepulcro,

“Você quer ser desmancha-prazer?
Tira-me ao tépido e pulcro!
Me acorda para arrefecer?
Como se não basta,
Quando inda casta,
Você cedo ao túmulo me poer?


Mas uma lei bem própria me expulsa

Me liberta da baldia prisão.
A cantilena sacra é insulsa,
A mim sequer comove oração;
Salmodiou sem efeito
Se os jovens a eito;
Ah! Terra não esmorece paixão.


Esse moço me foi prometido,

Nos bons tempos do templo de Vênus.
Mãe, contudo foi o voto rompido,
Pois o alheio e falso os seduz!
Mas nenhum deus ouve,
Quando a madre ousa
Recusar à lha as bodas de jus.


Da sepultura lançada à vida,

À procura do anelado bem,
Por perdido ser inda querida
Aspirar todo o sangue que tem.
Quando ele morrer,
Mais hei de querer,
Sedenta, a debelar gente jovem.


Tanto não viverás!

Definhas-te, aqui neste lugar, meu belo;
Ofertei-te minha correntinha
Comigo guardo a mecha com zelo.
Veja-lhe ademãs,
Depois, meras cãs!
Lá insosso e sem cor será o pelo.


“Ouça, mãe, a prece derradeira:

Minha última morada abre!
Então arme uma grande fogueira,
Os amantes nas chamas, descanse!
Chispa resplandece,
Brasa incandesce,
Devoltamos à crença fagueira.”



                                                                   Tradução: Maria Aparecida Barbosa

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Chequer/Cançado, 2; BH, 0170802011.

Não sou Dante mas faço visitas constantes ao
Inferno pior não tenho Beatriz nem Virgílio a
Guiar-me tenho apenas os passos trôpegos de
Bêbados dos bares das ruas de fundo da cidade
No rosto as cicatrizes das bofetadas do destino
Na face as marcas congeladas das lágrimas
Obscuras no dorso a umidade da chuva oblíqua
No semblante a imagem abstrata duma
Personagem de Cervantes ou o Dom Quixote ou
O Sancho Pança nos bolsos revirados das calças
Rotas não trago valores simplesmente esta
Literatura caligulaniana estes versos que Nero
Cantava em sua lira ao matar a mãe ao
Incendiar a Cidade Eterna podeis-me revirar
Ao avesso em vice-versa em versa-vice não
Encontrareis serenidade de espírito todas as
Reverberações tumulares todos os ecos
Tubulares ressoam em minha alma a resposta
Concreta é o silêncio das noites dos planetas
Fantasmas de sistemas solares do além do além
Tão distante que lá não chegam as almas não
Chegam os espíritos que ficam todos nos
Infernos onde passo a procurá-los Dante nos
Contou a sua visita na Divina Comédia conto as
Minhas visitas nos delírios de bêbado que me
Atormentam no passar da conta das doses
Ministradas para gerar esta literatura que se
Enobrecer quem a ler o poeta se sentirá
Também enobrecido por ter idêntica Beatriz
Resgatada das chamas as choupanas das senzalas urbanas

Nietzsche, Não querer servir de símbolo; BH, 0210902012.

Eu lastimo os príncipes:
Não lhes é permitido se anularem de tempos em tempos
Na sociedade e assim não aprendem a conhecer os
Homens a não ser numa posição desconfortável e numa
Constante dissimulação; a contínua obrigação de
Significar alguma coisa  acaba por transformá-los
Efetivamente em solenes nulidades.
 - E assim vai acontecer a todos aqueles que têm o
Dever de ser símbolos.

Llewellyn Medina, Ah! o Rio; BH, 0210902012.

Ah! o Rio quando sopra o sudoeste
Um vento envolvente e frio
Frio para o calor do Rio
Um vento que nunca vem só
Traz nuvens cinzentas
Encrespa as ondas de Ipanema
Até o espelho d'água da Lagoa balança ...

As montanhas altaneiras
Sabem que têm de ceder a vez
E escondem-se naquelas nuvens cinzentas
E guardam uma pontinha de inveja ...

Pois é assim o Rio!

Há o tempo do azul do céu
Há o tempo em que as montanhas rompem o horizonte
Há o tempo do sol - este é quase o ano todo!

Mas há também o tempo do sudoeste
Que alguns privilegiados desta terra cultuam
 - Acho que sou um deles!

É que na aparência o sudoeste é contra o Rio
Pois exibe tudo aquilo que escapa do cartão postal
Qual turista vem atrás do céu cinzento
Do vento friorento
Da praia vazia
Da praça vazia?
Do botequim sem chope?

Turista quer sol
Quer verde quer riso
Quer chope quer mar
Quer corpos apolíneos que levitam
Quer comer montanhas de sorvete
E quer novamente corpos apolíneos que levitam ...

Mas há quem queira o sudoeste
Quem queira ouvir as notícias do minuano
Que vem dos pampas
Que ecoam desde os Andes
Que ficaram aqui e ali ...

Há quem queira ser contido
(O sudoeste é o vento dos contidos)
E prefira o silêncio da solidão
(O sudoeste é propício ao exercício da solidão)

Há aqueles que buscam esse Rio
Que o sudoeste lambe tão inconstantemente
(Pois o sudoeste não costuma aparecer
Com a regularidade do mecanismo do relógio)

Acho que até a moça da previsão do tempo
Não prevê o sudoeste - bem eito!
Este prepara das suas
Esconde o Rio por horas,
Dias,
Fim de semana
(Principalmente por fim de semana) ...

O sudoeste revela outro Rio de Janeiro
Que causa preguiça
Convida a acordar tarde
A vestir bolorentas roupas de inverno
(É amigos - no Rio roupa de inverno é sempre bolorenta)
Pra ir à esquina comprar o jornal de domingo
A refugiar-se no shopping
Esse templo do tempo
Que o carioca desde cedo compreendeu ...

Não venham me dizer
Que o sudoeste não é carioca
Aqui a universalidade transforma-se em arroz-de-festa
Aqui todos os embates
Resolvem-se imemoriais FLA X FLU
Aqui o sudoeste é aquele vento amigo
Que sopra afavelmente
Convida o carioca a fechar a janela ...

É que o sudoeste gosta de desfrutar sem concorrência
As delícias deste Rio
Que todos sabemos que é eterno!

Ave Rio
Os que te amam te saúdam!

Manuel Bandeira, Ao Crepúsculo; BH, 0210902012.

O crepúsculo cai, tão manso e benfazejo
Que me adoça o pesar de estar em terra estranha.
E enquanto o ângelus abençoa o lugarejo,
Eu penso em ti, apaziguado e sem desejo,
Fitando no horizonte a linha da montanha.

A montanha é tranquila e forte, e grande e boa.
Ela afaga o meu sonho. E alegra-me pensar
(Tanto a saudade a um tempo acalenta e magoa!)
Que tu, na doce paz da tarde que se escoa,
Teces o mesmo sonho, ouvindo e vendo o mar.

Embalada na voz do grande solitário,
Tu mortificarás teu casto coração
Na dor de revocar o noivado precário.
(Ah, por que te confiei o meu desejo vário?
Por que me desvendaste a tua sedução?)

Se nos aparta o espaço, o tempo - esse nos liga.
A lembrança é no amor a cadeia mais pura.
Tu tens o grande Amigo e eu tenho a grande Amiga:
O mar segredará tudo quanto eu diga,
E a montanha dir-me-á tua imensa ternura.

Manoel de Barros, O Poeta; BH, 0210902012.

Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
Se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

Casimiro de Abreu, Perfume de Amor; BH, 0210902012.

                                                       

                                                        Na primeira folha dum Álbum

A flor mimosa que abrilhanta o prado
Ao sol nascente vai pedir fulgor:
E o sol, abrindo da açucena as folhas,
Dar-lhe perfumes - desejar-lhe amor.

Eu que não tenho, como o sol, seus raios,
Embora sinta nesta fronte ardor,
Sempre quisera ao encetar teu álbum
Dar-lhe perfumes - desejar-lhe amor

Meu Deus, nas folhas deste livro puro
Não manche o pranto da inocência o alvor,
Mas cada canto que cair dos lábios
Traga perfumes - e murmure amor.

Aqui se junte, qual num ramo santo
Do nardo o aroma e da camélia a cor,
E possa a virgem, percorrendo as folhas,
Sorver perfumes - respirar amor.

Encontre a bela, caprichosa sempre,
Nos ternos hinos d'infantil frescor,
Entrelaçados na grinalda amiga
Doces perfumes - e celeste amor.

Talvez que diga, recordando tarde
O doce anelo do feliz cantor:
 - Meu Deus, nas folhas do meu livro d'alma
Sobram perfumes - e não falta amor!

Mario Quintana, A Missa dos Inocentes; BH, 0210902012.

Se não fora abusar da paciência divina
Eu mandaria rezar missa pelos meus poemas que não
Conseguiram ir além da terceira ou quarta linha,
Vítimas dessa mortalidade infantil que, por ignorância dos pais,
Dizima as mais inocentes criaturinhas, as pobres...
Que tinham tanto azul nos olhos,
Tanto que dar ao mundo!
Eu mandaria rezar o réquiem mais profundo
Não só pelos meus
Mas por todos os poemas inválidos que se arrastam pelo mundo
E cuja comovedora beleza ultrapassa a dos outros
Porque está, antes e depois de tudo,
No seu inatingível anseio de beleza!

Nietzsche, Não se pode apagar da alma de um homem a marca que seus ancestrais; BH, 0210902012.

Não se pode apagar da alma de um homem a marca que seus ancestrais
Construíram com a maior predileção e constância:
Seja que tenham sido, por exemplo, pessoas econômicas, auxiliares de
Um escritório ou de um banco, modestos e burgueses em seus desejos,
Modestos também em suas virtudes; seja que tenham no hábito de mando,
Dados e prazeres grosseiros e, ao lado de tudo isso, talvez a responsabilidades
E a deveres mais grosseiros ainda; seja que, enfim, lhes tenha ocorrido de
Sacrificar antigos privilégios de nascença ou de fortuna para viver
Inteiramente segundo sua fé (segundo seu "Deus"), como homem de uma
Consciência inflexível e terna, corando diante de qualquer compromisso.
É impossível um homem não tenha no sangue as qualidades e as predileções
De seus pais e de seus ancestrais, embora as aparências possam fazer crer o
Contrário.
Esse é o problema da raça.
Quando se sabe de algo a respeito dos pais, se saberá algo dos filhos:
Qualquer intemperança chocante, qualquer vontade mesquinha, uma propensão
Forte - esses três traços reunidos têm desde sempre formando o verdadeiro
Tipo plebeu - tudo isso se transmite ao filho tão seguramente que o sangue
Corrompido e pela educação, por melhor que seja, só poderá apagar a
Aparência de semelhante herança.
 - Mas não é esse hoje o objetivo da educação e da cultura?
Em nossa época muito democrática, ou melhor, plebeia, a "educação" e a
"Cultura" devem ser sobretudo a arte de enganar acerca das origens, acerca
Do atavismo popular na alma e no corpo, a arte de iludir e esconder o
Plebeísmo hereditário do corpo e da alma.
Um educador que hoje pregasse a verdade antes de tudo e gritasse
Constantemente a seus alunos:
"Sejam verdadeiros!
Seja naturais!
Mostrem-se exatamente como são!" - semelhante asno, virtuoso e cândido,
Acabaria recorrendo, cedo ou tarde, à força de Horácio para naturam expellere.
(Expulsar a natureza)
Com que resultado?
A "plebe" usque recirret.
(Até que volte correndo)