sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, Quase; BH, 0120802011.

Arrumar a vida, pôr prateleiras na Vontade e na ação...
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado.
Mas que bom ter o proposito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!

Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Àlvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem - que antes de ontem que é sempre...

Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei...

Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir.

Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.

Assim se faz a literatura...
Coitadinhos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.

Vendedeira da rua cantando o seu pregão como um hino inconsciente.

Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futuro, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olhos dos papéis que estou pensando em afinal não arrumar
Para a janela por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, acaba no meu cérebro em metafísica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando-se,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema.
Como um deus, não arrumei nem a verdade nem a vida.

                                                                                                       15/5/1929

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