Ícones da música popular brasileira contam, com suas próprias palavras, o que pensam (ou pensavam) sobre limitação de liberdade de expressão, censura e opressão por parte dos mais poderosos. Mas eis que chega a roda viva e…
1. Chico Buarque, “Corrente” (1976) – nas construções ao gosto de Chico, os versos se encadeavam, se desencadeavam, mudavam de ordem e revelavam o dito pelo subdito. O termo “corrente”, além do mais, remetia a tudo que a cultura brasileira não queria: grilhão, prisão, escravidão intelectual.
2. Wilson Simonal, “Cordão” (1975) – Simonal, já caído em desgraça tantocom direita quanto com a esquerda, apanhava canção de 1971 de Chico e acrescentava camadas de significados: “Ninguém, ninguém vai me acorrentar/ enquanto eu puder cantar/ enquanto eu puder sorrir”.
3. Gilberto Gil e Mutantes, “A Luta contra a Lata ou A Falência do Café” (1968) - FAROFAFÁ tem recorrido repetidas vezes a esta canção perdida do ano trágico de 1968, mas torna-se mais uma vez inevitáveis. O jovem Gil, recém-liberto da lida como funcionário de fábrica de sabonetes, satirizava o conservadorismo, o reacionarismo e o patrimonialismo dos velhos e decadentes barões do café. Mudou?
4. Caetano Veloso e Mutantes, “A Voz do Morto” (1968) – o jovem Caetano ia na garganta dos barões da canção popular, já então aninhados na própria irrelevância e nos cargos de diretoria no sistema de arracadação de direitos autorais: “Eles querem salvar as glórias nacionais/ as glórias nacionais/ coitados/ ninguém me salva, ninguém me engana/ eu sou alegre, eu sou contente, eu sou cigana/ eu sou terrível, eu sou o samba”. E ainda complementava com um grito geracional de apoio: “Viva o Paulinho da Viola!”.
5. Aracy de Almeida, “A Voz do Morto” (1968) – a versão original do devastador (não-)samba de Caetano, segundo ele feita a pedido da iracunda ex-intérprete de Noel Rosa e futura jurada de calouros de Silvio Santos: “Eu sou terrível, eu sou o samba/ a voz do morto, o cais do porto, os pés do torto, a vez do louco, a paz do mundo”.
6. Caetano Veloso e Mutantes, “É Proibido Proibir” (1968) – o titulo é a mensagem – e a gravação inclui o discurso irado e perplexo que Caetano fez no festival, sob vaia cerrada, perguntando “que juventude é essa?” e afirmando ao público que “vocês são iguais sabe a quem?, àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores, vocês não diferem em nada deles”. E Caetano 1968 briga de foice com o Caetano 2013: “Vocês são a mesma juventude que vão sempre matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem”, mais “o problema é o seguinte: vocês estão querrendo policiar a música brasileira”, mais “se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos”.
7. Roberto Carlos, “É Proibido Fumar” (1964) – o “É Proibido Proibir” tropicalista de Caetano dialogava de modo agridoce com uma das duas únicas canções em que Roberto se manifestou preocupado diante de alguma espécie de proibição, censura ou cerceamento.
8. Jorge Ben, “Por Que É Proibido Pisar na Grama” (1971) – Jorge, que não é de se meter nesse tipo de confusão, acordou atormentado naquela manhã de 1971: “Preciso saber urgentemente/ por que/ é proibido pisar na grama”. Por que, por quê?
9.Milton Nascimento, “Cadê” (1973) – impiedosamente censurado nas letras que seus parceiros compunham, Milton acabou por desossar o álbum Milagre dos Peixes e transformá-lo num disco quase sem palavras – mas com muitos gemidos, uivos e trinados de pássaro engaiolado.
10. Milton Nascimento, “Menino” (1976) – já prenhe de palavras, Milton fere a censura com a lâmina fina da poesia: “Quem cala sobre teu corpo/ consente na tua morte/ talhada a ferro e fogo/ nas profundezas do corte”.
11. Ney Matogrosso, “Dos Cruces” (1978) – reinterpretando uma canção do Clube da Esquina (1972) de Milton, o transgressor ex-integrante dos Secos & Molhados ataca o “monte do esquecimento” – “este é um país sem memória”, costumamos lastimar, enquanto celebramos subliminarmente todo tipo de esquecimento.
12. Márcia, Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, “Cautela/ Mordaça” (1975) – hoje diretor de sociedade arrecadadora de direitos autorais, o fino poeta Pinheiro açoita com versos a censura e a ditadura.
13. MPB 4, “Pesadelo” (1972) – também de Paulo César Pinheiro, os versos buarquianos confrontam desgraça e esperança: “Quando um muro separa uma ponte une/ (…) você corta um verso, eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto/ de repente olha eu de novo/ perturbando a paz, exigindo o troco/ vamos por aí eu e meu cachorro, olha o verso, olha o outro, olha o velho, olha o moço chegando/ que medo você tem de nós?”.
14. Nara Leão, “Opinião” (1964) – indo buscar matéria-prima no morro com Zé Keti - e antes de todo mundo -, Nara fazia par com o “É Proibido Fumar” de Roberto já antevendo tudo que viria adiante: “Podem me prender, podem me bater/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião”.
15. Sérgio Ricardo, “Calabouço” (1973) – Sérgio canta em sintonia com o Calabar de Chico Buarque, peça e disco integralmente interditados pela Censura em 1973: “Cala boca, moço, cala boca, moço!”.
16. Maria Bethânia, “Cala a Boca, Bárbara” (1974) – canção-símbolo de Calabar, 55 segundos liberados para Bethânia: “Cala a boca!”.
17. Nara Leão e Chico Buarque, “Vence na Vida Quem Diz Sim” (1980) – a letra censurada em Calabar volta à tona num dueto do autor com Nara, e num discurso que seria possível ouvir Chico remetendo em 2013 aos pretensos biógrafos da MPB: “Se te dão um soco/ diz que sim/ (…) se te tratam no chicote, babam no cangote/ baixa o rosto e aprende o mote, olha bem pra mim:/ vence na vida quem diz sim”.
18. Chico Buarque, “A Voz do Dono e o Dono da Voz” (1981) – Chico andava contrariado com o poderio das gravadoras multinacionais, que arrancavam o couro do dono e da voz. Hoje talvez coubesse melhor uma versão “A Bola do Dono e o Dono da Bola”.
19. Elis Regina, “Como Nossos Pais” (1976) – outra canção recorrente por aqui, em que o jovem Belchior mexia com fogo e se voltava, já então, contra o acomodamento $$$ ético $$$ dos nossos heróis: “Nossos ídolos ainda são os mesmos/ e as aparências não enganam, não/ você diz que depois deles/ não apareceu mais ninguém/ você pode até dizer que eu tô por fora/ ou então que eu tô inventando/ mas é você que ama o passado e que não vê/ que o novo sempre vem/ hoje eu sei que quem me deu a ideia/ de uma nova consciência e juventude/ tá em casa, guardado por Deus, contando o vil metal”. Elis encampou, e seus colegas não devem ter gostado muito – nenhum deles jamais ousou reinterpretar esta canção, que cantamos muitas vezes sem nem perceber do que é que ela está falando.
20. Grupo Manifesto, “Garota Esquerdinha” (1968) – letra perturbadora, num conjunto emepebista do qual sairiam tanto a underground Lucina (da posterior dupla com Luli) quanto Gutemberg Guarabyra e o futuro mandachuva por décadas (e até hoje) das trilhas sonoras da Globo, Mariozinho Rocha.
21. Momento Quatro, “Classe Dominante” (1969) – grupo de origem da compositora Joyce, o Momento obedecia ao momento e investia contra a classe dominante, minutos antes do AI-5.
22. Paulinho da Viola, “Consumir É Viver” (1971) – uma rara canção de protesto de Paulinho, contra o… consumismo desenfreado. O que seria feito de Caras e das revistas de fofoca se só existissem paulinhos-da-viola na MPB?
23. Marcos Valle, “Garra” (1971) – ao mesmo tempo hippie e compositor da emergente Rede Globo, Marcos era a personificação do dilema, em versos e música soul de primeira: “Corro por dinheiro/ até jogar no chão meu corpo inteiro/ eu vou morar no centro da cidade/ eu não conheço nem minha cidade/ mas eu vou vencer/ se eu não morrer”.
24. Erasmo Carlos, “26 Anos de Vida Normal” (1971) – interpretando Marcos Valle em pique samba-soul-funk, Erasmão desconfiava da robotização intelectual imposta pela mídia: “26 anos de vida normal/ cinco eu passei lendo jornal/ 26 anos esperando você/ quatro eu passei vendo TV”.
25. Ronnie Von, “Meu Novo Cantar” (1969) – vejamos como são maleáveis os seres humanos – até o “pequeno príncipe” do iê-iê-iê já pediu mudança, transformação e progresso.
26. Sidney Miller, “Pois É, pra Quê?” (1968) – no monte do esquecimento da MPB, Sidney era um dos mais atentos representantes da vertente do protesto. “A gravata enforca/ o sapato aperta/ o país exporta/ e na minha porta/ ninguém quer ver/ uma sombra morta/ pois é, pra quê?”.
27. Sérgio Sampaio, “Filme de Terror” (1973) – pertencente à mesma vertente dos esquecidos de Sidney e também morto precocemente, o parceiro de Raul Seixas cutucou com vara curta os esqueletos de armário da ditadura: “Quem ousar sair de casa/ passe a tranca e feche o trinco/ no chão do cinema Império da Tijuca o cemitério do Caju”.
28. Taiguara, “Mais Valia” (1983) – terceiro maldito morto prrecocemente, em ritmo de comovente guarânia caipira: “Pra que é’ que eu quis mais dinheiro/ se quanto mais eu possuía/ mais me via interesseiro e no meu cativeiro/ mais eu te perdia?/ fiz capital te explorando/ fiz o mal nos separando/ e hoje aqui estou derrotado, um ladrão desalmado que acabou chorando/ e hoje aqui estou fracassado, um patrão desarmado/ qe acabou pagando”.
29. Gilberto Gil, “Todo Dia É Dia D” (1973) – quarto maldito, sucumbido pelo suicídio: Torquato Neto, na voz e no violão de Gilberto.
30. Gal Costa, “Três da Madrugada” (1973) – canção suicida de Torquato, daquelas de escritor que tem de lançar suas biografias de graça na internet, para driblar o aparato repressivo.
31. Tom Zé, “Parque Industrial’ (1968) – quinto maldito, este fugido do esquecimento e bem vivo até hoje: “A revista moralista traz uma lista dos pecados da vedete/ e tem jornal popular que nunca se espreme porque pode derramar/ é um banco de sangue encadernado”. Mas como proceder, se a revista moralista e o jornal popular ajudam a vender canções?
32. Paulinho da Viola, “Falso Moralista” (1972) – Paulinho canta Nelson Sargento e passa o recado reto, como diria certo candidato presidencial de 2013: “Você condena o que a moçada anda fazendo/ e não aceita o teatro de revista/ arte moderna pra você não vale nada/ até vedede você diz não ser artista/ você se julga muito bom e até perfeito/ por qualquer coisa deita logo falação/ (…) você não passa de um falso moralista”.
33. Luli e Lucina, “Coração Aprisionado” (1979) – sexta e sétima malditas, vivas, as compositoras gravadas lindamente por Ney Matogrosso e pelos Secos & Molhados cravam a flor e o espinho no desejo de liberdade: “Coração aprisionado/ não canta, não canta, amor/ há uma fera à solta, à solta, amor, dentro de mim”.
34. Fausto Nilo e Núbia Lafayette, “Coração Condenado” (1979) – canção maldita do poeta-compositor de sucessos do popular Fagner cantada lindamente pela diva ultrapopular Núbia: “Condenado é quem desencadeia/ silêncio de catedrais/ nestas paisagens tão feias/ de pesadelos iguais/ e o pensamento pranteia/ porque só pensa e não faz/ um coração na cadeia/ reflete a teia mordaz/ que a minha boca receia/ e meus olhos só dizem ‘jamais’”.
35. Djavan, “Nem Um Dia” (1996) – Djavan, outro não costuma se meter em encrenca, faz seu protesto em prol de não enviarmos livros às fogueiras: “Um dia frio/ um bom lugar pra ler um livro/ e o pensamento só em você/ eu sem você não vivo”.
36. Caetano Veloso, “Livros” (1996) – ele gosta dos livros. E de citar os autores dos livros.
37. Wanderléa, “Esta Noite Eu Sonhei” (1966) – nada a ver, esta canção aqui no meio? Ah, sei lá, entende?…
38. Secos & Molhados, “El Rey” (1973) – filho de militar, Ney canta com gosto a miséria moral d’el rey.
39. Roberto Carlos, “Ilegal, Imoral ou Engorda” (1976) – aqui, a segunda canção incomodada com o proibicionismo na lista de um autor de resto ganancioso por proibições.
40. Ney Matogrosso, “América do Sul” (1975) – 1975, censura pesada, e Ney, em penas de pavão, pedia um modo novo de ver o mesmo: “Desperta, América do Sul!!!”.
41. MPB 4, “Roda Viva” (1967) – Mas de que vale tudo isso, seu Chico, se chega a roda viva e carrega tudo pra lá?
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