sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, Apostila; BH, 040202011.

Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, para que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Milton...
Mas é tão difícil ser honesto ou ser superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!

Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo, que não se vê)...
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil...
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos-
Imagens da vida, imagens das vidas, Imagem da Vida...

Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame da consciência desconheça...
Não ter um ato indefinido nem factício...
Não ter um movimento desconforme com propósitos...
Boas-maneiras da alma...
Elegância de persistir...
Aproveitar o tempo!

Meu coração está cansado como um mendigo verdadeiro
Meu cérebro está pronto como um fardo posto no canto
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?

(Passageira que viajava tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegamos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto à vida?)

Aproveitar o tempo!...
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisas,
A poeira de uma estrada, involuntária e sozinha,
O regato casual das chuvas que vão acabando,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da terra,
E estremece, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses no chão do Destino

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