sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Gonçalves Dias, I Juca Pirama; BH, 0300902011.

I

No meio das tabas de amenos verdores,                                                                                                                                                 
Cercadas de troncos - cobertos de flôres
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Terríveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.

São urdos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, Já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na bôca das gentes,
Condão de prodígios de glória e terror!

As tribos vizinhas, sem fôrças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d'outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em tôrno dum índio infeliz.

Quem é? - ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: - de um povo remoto
Descende por certo - dum povo gentil;
Assim lá na Grécia ao ecravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.

Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mão dos Timbiras: - no extenso terreiro
Assola-se o teto, que teve em prisão;
Convidam-se as tribos dos seus arredores,
Cuidosos se incumbem do vaso das côres,
Dos vários aprestos de honrosa função.

Acerva-se a lenha da vasta fogueira
Entesa-se a corda da embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis:
A custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vário matiz.

Em tanto as mulheres com lêda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.

II

Em fundos vasos d'alvacenta argila ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa, reina o festim.

O prisioneiro, cuja morte anseiam, sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso jamais verá!

A dura corda, que lhe enlaça o colo, mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve do que o festim!

Contudo os olhos d'ignóbil pranto secos estão;
Mudos os lábios não desceram queixas do coração.

Mas um martírio, que encobrir não pode, em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto na fronte audaz!

Que tens, guerreiro? Que temor te assalta no passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram, folga morrendo.

Folga morrendo; porque além dos Andes revive o forte,
Que soube ufano contrastar os mêdos da fria morte.

Rasteira grama, exposta ao sol, a chuva, lá murcha e pende:
Somente ao tronco, que devassa os ares, o raio ofende!

Que foi? Tupã mandou que êle caísse, como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado esmoreceu!

Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes revive o forte,
Que soube fano contrastar os mêdos da fria morte.

III

Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira.
A quem do sacrifício cabe as honras.
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a iverapeme,
Orgulhoso e pujante. - Ao menor passo
Colar d'alvo marfim, insígnia d'honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d'imigos feros.

"Eis-me aqui", diz ao índio prisioneiro;
"Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
"As nossas matas devassaste ousado,
"Morrerás morte vil da mão de um forte."

Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
"Diz-nos quem és, teus feitos canta,
"Ou se mais te apraz, defende-te". Começa
O índio que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.

IV

Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei:
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.

Andei longas terras
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes - escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.

E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.

Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Sem lar, sem abigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgôsto
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínios caminhos,
Cobertos d'espinhos
Chegamos aqui!

O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto
Só qu'ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho
Das frechas que tenho
Me quero valer.

Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um trôço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossêgo
Do pai fraco e cego,
Qual seja, -  dizei!

Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.

Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!

Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer.

V

Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pôde nunca um chefe dar tal òrdem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.

- Timbira, diz o índio enternecido,
Sôlto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro  ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que sómente por seu na voz conhece.
- És livre, parte. - E voltarei. - Debalde.
- Sim, voltarei, morto meu pai. - Não voltes!
É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
- Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer! - És livre; parte!
- Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.

- Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.

Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precípite. - Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam:
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio.
Espectro d'homem, penetrou no bosque!

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