segunda-feira, 20 de abril de 2020

Não aprisione seus mortos, Llewellyn Medina.

Não aprisione seus mortos
em retratos bolorentos
pendurados em paredes nuas
baratos quadros expressionistas

deixe-os morrer 
como se morre no esquecimento
vez ou outra lembre-se dos mais afetuosos
ou do mais desprezível deles todos
a lembrança pode ser afetuosa ou indesejada

deixe que seus mortos o esqueçam
não encomende missa 
para lembrar sétimo dia ou dia de aniversário
deixe quietos os seus mortos

a morte é feita de quietude
esvai-se  na lembrança
aprisiona-se na maleita 
que se infiltra mansa e imperceptivelmente
no primeiro esquecimento das chaves
na confusão quanto ao dia da semana do mês 
dia em que costumava cortar os cabelos
que por conta própria migram
para cabeças prestes de virem à luz

esqueça seus mortos da mesa patriarcal
quando havia mesa patriarcal
lá estão circunspectos em sua aparência de sempre
a terçar intrigas familiares
o verdadeiro alimento até de famílias milenares

o avô Cesar espadaúdo em seu metro e oitenta
a insistir ouvissem todos a Peleja do Cego Aderaldo e Zé Pretinho do Tucum
cantada com donaire e sentimento
o misterioso avô Donato nascido com a Lei Áurea
a avó Naninha magra cortante sábia ironia
a avó Maria curtida silhueta africana
os periféricos e esquecidos frequentadores 
unidos por farta macarronada
que Conceição síntese de todos
governava com incontestada autoridade

lá está Lourenço a pensar na Lolita
que nunca abraçou
Nestor não lutou em Troia 
seus ícones contraditórios
a foice o martelo o crucifixo de Nosso Senhor  

mortos são presenças esquecidas
querem a liberdade negada 
a morte sem adjetivo sem advérbio
partilhado o patrimônio  
morte extirpada de álbum de família
destruído pela avidez do tempo
a morte simplesmente.

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