quarta-feira, 22 de abril de 2020

A noiva de Corinto, Goethe.

De Atenas provindo, a Corinto

Chega um jovem que desconheciam,
Como hóspede em domo distinto.
Os dois pais sempre se recebiam,
Ambos desde cedo
O moço e a moça
Noivo e noiva já se prometiam.

Mas será ele também lá bem-vindo,

Se boas graças nunca conquistou?
Com seus gentios é pagão ainda,
E o da casa em Cristo batizou.
Nova fé que fulge
Contra amor insurge
Qual erva daninha logo se arrancou.

Repousa a casa inteira, é tarde,

Sem pai ou filha, só, a dona domina;
Recebe o moço com boa-vontade,
Logo o melhor quarto ela lhe destina.
Uma ceia ostenta,
Bem alojá-lo tenta:
Depois diz boa noite, sai em surdina.

Entretanto o apetite é perdido

Farta refeição posta, a despeito;
Extenuado, de comes abstido,
Mesmo vestido faz-se ao leito;
Quase ele cochila,
Mas a porta estila
Esgueira-se ao quarto um afeito.

Ao clarão da luz, vê se insinuar

Pelo quarto, moça virginal
Brancos véus a acobertar,
Cingindo a fonte preto-ouro xal.
Tão logo o vislumbra
No canto à penumbra,
Espanta, mão alva eleva ao alto.

“Sou por acaso estranha”, diz ela,

“Que do hóspede nem tenho notícia?
Ah, assim mantêm-me eles na cela!
Por isso cometo a inconveniência.
Prossiga dormindo
Me esquivo, vou indo,
Saio como vim, peço licença.”

“Fique, jovem!” — grita o rapaz

Lépido num só pulo de seu tálamo:
“De Céres e Baco, as oferendas
Tens. Agora amor traz teu âmago.
O susto te descora
Vem, não vá embora,
Deleitemos dos deuses o júbilo!

“Fique longe, mancebo! Parado!

Não me é permitida a ventura.
Fatal passo, ah! já foi dado.
Boa mãe doente em insânia pura!
Caso convalesça
A promessa faz:
Que consagra filha aos céus em jura.

De deuses antigos o cortejo

Proscrito, a casa silencia logo.
Invisível um uno em adejo,
O salvador na cruz está morto.
E o imoleiro,
Não rês ou cordeiro,
Mas, seres humanos tem sacrificado.

Ele indaga as palavras pesando,

Que jamais com o espírito desavêm:
É possível ter num ermo aposento
Minha noiva em pessoa ante mim?
“Seja minha, criança!
Os pais com a fiança
Bênçãos celestes nos concedem.”

“Coração, não é a ti que destino!

É a mana que te hão de atribuir.
Enquanto na cela nefasta amofino,
Lembre de mim um dia no porvir,
Que só penso em ti
Pelo amor sofri
E a terra em breve há de cobrir!”

“Não! Eu juro, com a mão sobre o fogo

Vontade paterna compartilhar;
Nem perdida ou desdita, te rogo,
Vem para a casa comigo viajar.
Fique! Eu te peço!
Um sonho confesso.
Nossas núpcias em festim celebrar!

E trocam eles prendas de amor:

Ela dá-lhe um dourado adereço,
Por sua vez, faixa de prata cor,
Presenteia-lhe em terno apreço.
“Não é meu o xale!
Mas muito me vale!
Dê-me uma mecha de teu cabelo.”

Dos fantasmas soa a fúnebre hora,

Quando ela transforma-se langue.
Ávida sorve a pálida boca
Sôfrega o vinho tinto qual sangue:
Mas de trigo o pão,
Que o gentil em vão,
Lhe oferece, ela sequer o tange.

Estende ela o cálice ao moço,

Que ardente o esvazia num gole.
E suplica a cear licencioso;
Amor, que seu coração console.
Mas ela resiste,
Ao que ele insiste,
Até que na cama em pranto implore.

Aproxima-se ela, ajoelha:

“Desatino é ver teu sofrer!
Satisfaça-te e toque-me e olhe
Esses membros que estou a esconder.
Clara como a neve,
Mas fria como deve
A amada que vens de eleger.”

Ardente a cerra, abraço viril,

Intenso a estreita, a inunda:
“Eu desejo aquecê-la do frio,
Mesmo que tu me venhas da tumba!
Um beijo fervente!
Anseio eloquente!
Não te queima uma paixão profunda?”

E selando em êxtase o amor,

Lágrimas ao desejo se mesclam;
Suga-lhe ela à boca o calor,
Presos um ao outro se infundem.
Seu ardor feroz
Anima-a voraz;
Não lhe pulsa o coração, porém!

Nisso a mãe pela casa vagueia

Sempre alerta, tão tarde em ofício,
Detém-se escutando à soleira,
Um singular gemido e bulício.
Em pleno alvoroço
A moça e o moço
Indícios de amor em balbucio.

Ela imóvel detém-se ao umbral,

Suspeita mas reluta uma vez,
Cisma e apura paixão cabal,
Que evoca a sanha cupidez —
“O galo canta, amada! —
Mas noutra madrugada…”
Beijos, beijos. “Tu vens, talvez?”

Não contém a raiva em delonga,

A porta ela abre de chofre:
“Há cá nesta casa songa-monga,
Que ao forasteiro se oferece?”
Entra e ojeriza,
Ao clarão divisa —
Santo Deus! A filha reconhece.

O jovem no primeiro espanto

Tenta com o véu a impudente,
Com o tapete, cobrir-lhe o desmanto;
Mas ela se ergue logo saliente.
Como um fantasma
Que do alto plasma
Longa e lenta, plana ao leito.

“Mãe, mãe!” Diz com voz de sepulcro,

“Você quer ser desmancha-prazer?
Tira-me ao tépido e pulcro!
Me acorda para arrefecer?
Como se não basta,
Quando inda casta,
Você cedo ao túmulo me poer?

Mas uma lei bem própria me expulsa

Me liberta da baldia prisão.
A cantilena sacra é insulsa,
A mim sequer comove oração;
Salmodiou sem efeito
Se os jovens a eito;
Ah! Terra não esmorece paixão.

Esse moço me foi prometido,

Nos bons tempos do templo de Vênus.
Mãe, contudo foi o voto rompido,
Pois o alheio e falso os seduz!
Mas nenhum deus ouve,
Quando a madre ousa
Recusar à fiha as bodas de jus.

Da sepultura lançada à vida,

À procura do anelado bem,
Por perdido ser inda querida
Aspirar todo o sangue que tem.
Quando ele morrer,
Mais hei de querer,
Sedenta, a debelar gente jovem.

Tanto não viverás!

Definhas-te, aqui neste lugar, meu belo;
Ofertei-te minha correntinha
Comigo guardo a mecha com zelo.
Veja-lhe ademãs,
Depois, meras cãs!
Lá insosso e sem cor será o pelo.

“Ouça, mãe, a prece derradeira:

Minha última morada abre!
Então arme uma grande fogueira,
Os amantes nas chamas, descanse!
Chispa resplandece,
Brasa incandesce,
Devoltamos à crença fagueira.”

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